Via da Verdade

Blog Português de Filosofia & Literatura mail: tiomas@yahoo.com

This page is powered by Blogger. Isn't yours?
domingo, abril 02, 2006
 
Globalização ética: condicionalismos, problemas e um impasse (excertos)


Abstract

Este trabalho envereda por duas linhas argumentativas, espero eu, complementares.
Numa primeira linha defendo a ideia que a organização do mundo globalizado tal como o conhecemos é o resultado de uma série de fenómenos sobre os quais os indivíduos exercem pouco ou nenhum controlo. Esta primeira linha pretende enquadrar o trabalho no contexto geral deste seminário - a ideia que dispositivos vários que transcendem o homem, infirmam, coagem e restringem as suas opções e formas de vida.
A segunda linha argumentativa procura apresentar a ideia que a ética surgiu como uma ferramenta para o homem resolver problemas que se lhe deparavam nos ambientes em que evoluiu e que, em resultado disso, é um instrumento insuficiente para resolver os problemas éticos colocados aos indivíduos pela sociedade globalizada. No final argumento a favor da homogeneidade da natureza humana como o mínimo ético comum que nos obrigará a encontrar soluções de compromisso no sentido de se resolverem alguns problemas prementes que se colocam às sociedades actuais.

Introdução

1 -Na primeira parte deste trabalho começo por tentar explicar os condicionalismos que levaram a que tenha sido a ?nossa? cultura ocidental a ser globalizada e não outra cultura qualquer, como a Chinesa, a Neoguineense, a Azteca ou a dos índios Aruáquis da Amazónia. Para esta parte do trabalho baseei-me no livro ?Armas, Germes e Aço? de Jared Diamond

2 -Na segunda parte apresento a religião como uma das forças modeladoras da sociedade ocidental que levaram ao aparecimento de fenómenos sociais como a ciência, a cultura, a técnica e os valores éticos da sociedade capitalista. Foco essencialmente a importância que o ascetismo protestante teve na modelação das mentalidades dos homens e na forma como isso abriu as portas à possibilidade de uma ética para a sociedade capitalista ocidental nos moldes que hoje a conhecemos. A obra tutelar desta secção é o livro de Max Weber, ?A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo?.

3 -Na terceira parte apresento alguns problemas éticos novos levantados pelo facto de vivermos num mundo globalizado a uma escala nunca antes vista. Alguns desses novos problemas éticos são: a necessidade de cuidarmos de uma atmosfera comum, a existência de uma economia comum e a necessidade de uma legislação básica comum a todos os seres humanos. A partir desses dados éticos novos, levantados por Peter Singer na sua obra ?Um só mundo? e por H.P. Martin e H. Shumann em ?A armadilha da globalização?, argumento a favor de uma ética universal e imparcial mais adequada à nova civilização global em que vivemos.

4 -Na quarta parte introduzo a noção de cosmopolitismo e o consequente impasse gerado por esta ideia de humanidade partilhada [a noção aceite por todas as pessoas sensatas de uma homogeneidade da espécie humana] e a constatação da impossibilidade de uma moralidade partilhada. Nesse sentido apresento os argumentos do filósofo inglês Simon Blackburn que no seu livro ?Rulling Passions? toma uma posição humeana acerca da origem sentimentalista e evolutiva da ética e, a partir daí concluo que a natureza humana opõe-se à necessidade (real) de uma ética global.

No final do trabalho defendo a necessidade de se superar esse impasse.

(...)

4 ? Um Impasse: éticas locais, preocupações globais

Cosmopolitismo
A ideia proposta por Peter Singer de que todos os seres humanos partilham uma humanidade comum (ponto 3), pertencem a uma única comunidade (a comunidade humana) e, como tal, devem preocupar-se e ajudar-se mutuamente independentemente da nacionalidade de cada um não é, dizia, uma ideia nova. Esta é a ideia base da noção de cosmopolitismo (do grego kosmopolitês; cidadão do mundo) introduzida no pensamento ocidental pela filosofia estóica e que foi de grande importância na modelação das mentalidades dos cidadãos do mundo greco-romano e da sociedade ocidental que aí teve a sua origem.
Existem diversas formas de colocar em prática os ideais cosmopolitistas, quer politica, económica ou moralmente. No entanto, aquilo que une os autores que defendem uma concepção rígida de cosmopolitismo (e Singer é sem dúvida um deles) é a noção de que as nossas obrigações morais para com os outros não devem ser enviesadas por considerações de cariz paroquial como a pertença a um grupo ou a uma nação que nos sejam mais afins.
É moral ser-se eticamente imparcial?
A ideia que aqui defendo é que uma ética composta por valores que transcendam a família, a tribo, a comunidade, ou a nação, isto é, uma ética universalista e imparcial para com o outro, independentemente das relações de parentesco, amizade, ou nacionalidade, é contra a natureza humana e contra o modo de ser do próprio pensar ético.
Para saber o que é isso do ?modo de ser do pensar ético? julgo que é necessário fazer referência a algumas ideias acerca da forma como tomamos decisões, formamos os nossos valores e agimos de acordo com eles. Seria necessário, para isso, aprofundar um pouco uma investigação acerca da natureza da mente humana, mas isso sairia fora do escopo deste trabalho. Limitar-me-ei a referir dois modelos contrastantes acerca da nossa natureza enquanto seres deliberadores e agentes morais: o modelo sentimentalista de inspiração humeana e o modelo racionalista de inspiração kanteana. Para isso apoiei-me na obra ?Rulling Passions? do filósofo inglês contemporâneo Simon Blackburn. Nos capítulos 7 e 8 desta obra o autor faz uma análise desses dois modelos concorrentes tomando uma posição clara em favor do modelo sentimentalista segundo o qual aquilo que ajuizamos ser moralmente correcto está intimamente ligado àquilo que sentimos, e que foi moldado pelo meio socio-cultural que nos envolve: as relações de amizade, família, respeito, honradez, as crenças espirituais que mantemos, etc., fazem com que tenhamos valores diferentes uns dos outros. A forte ligação (biológica) entre a natureza humana e a ética humana justifica, de um modo imparcial, algumas práticas sociais, e alguns valores éticos, parciais. À semelhança do que escreveu Nietzsche acerca da verdade, os nossos valores morais são, do princípio ao fim, antropomórficos.
Ora, este facto enviesa a nossa imparcialidade ética pela raiz uma vez que o nosso comportamento moral é moldado pelo valor que achamos que devemos atribuir a cada um dos outros. Tendo em conta a origem socio-cultural dos valores morais é extremamente difícil, se não mesmo impossível, ser-se eticamente imparcial. A moral é por natureza parcial, como tal julgo que é até pertinente perguntar se é moral ser-se eticamente imparcial? Para o ilustrar pensemos num ser humano que orientasse a sua vida moral por estritos ideais de universalidade e imparcialidade, dando a mesma relevância ética a todos os seres humanos por igual. Ora, esse ser humano seria necessariamente um mau pai, um mau marido, um mau amigo, um mau cidadão, etc. Uma vida humana com sentido é necessariamente uma vida que nos possibilite ligações íntimas, profundas e completas com os seres humanos que nos são mais próximos. É natural que nos sintamos mais ligados aos nossos parentes e amigos que a um indivíduo que viva do outro lado do mundo. É mesmo natural que sintamos algum desapego para com a vida desse indivíduo. Com os nossos familiares, amigos e concidadãos, partilhamos muito mais que uma humanidade comum e, como tal, devemos muito mais a eles que a outro ser humano qualquer.

O paradoxo entre o sentimento cosmopolitista de uma humanidade partilhada, isto é, a noção de que vivemos num mundo global em que formamos uma só comunidade e todos temos certas obrigações morais universais, e o sentimento de que somos, e devemos ser, eticamente parciais, ou seja, que temos mais obrigações morais para com aqueles que nos são mais próximos, esse paradoxo, dizia, é dificilmente superável e a tentativa de o superar, ou contornar, é um desafio que necessariamente temos de nos colocar.

Resumindo, o que procurei mostrar nesta secção foi que o homem resiste à globalização, ou seja, dada a origem sentimentalista e evolucionista dos nossos valores morais, a nossa natureza humana opõe-se a uma ética global, universal e imparcial. O homem não evoluiu no sentido de viver num mundo global, mas numa aldeia, numa tribo, numa comunidade relativamente pequena, fazendo parte de uma família, de um clã ou de uma tribo. Como tal não aceita naturalmente a ideia de uma ética que transcenda os valores que melhor se adequam a essas realidades. Desde que começou a viver em sociedade o homem evoluiu para viver numa pequena comunidade de laços pessoais e foi no sentido de fortalecer esses laços sociais e sentimentais com os que lhe eram mais próximos que desenvolveu os seus valores morais, os seus códigos de conduta ética, apoiados num aparato cognitivo próprio que lhe possibilitam pensar e agir de acordo com essas necessidades. Porém, num curto espaço de tempo (comparado com a sua longa história evolutiva de mais de 100 mil anos) o homem viu-se forçado a viver no mundo inteiro e preocupar-se com o mundo inteiro. É, pois, natural que esse mesmo aparato cognitivo, esses mesmos códigos de conduta ética, enfim, esses valores morais, que tiveram origem e evoluíram para resolver problemas nos nossos ambientes e sociedades ancestrais (família, clã, tribo, nação) sejam desadequados a uma ética radicalmente diferente, uma ética imparcial, indiferente para com o que nos é mais ou menos próximo, uma ética demasiado racional e como tal demasiado inumana. No fundo a ética que idealmente se adequaria ao modelo de mundo para o qual caminhamos. Uma ética demasiado irrealista para um mundo demasiado real.

Em face desse caminho que se trilha à frente do homem, este parece coagido a encarar-se como um supra-homem, um homem universal, quando, claramente não tem capacidades para isso. Não se estará a exigir demasiado do homem actual? O esforço para uma ética universalista e imparcial não será um passo maior que aquele que as suas curtas pernas podem dar? Por outro lado, como exigir menos do que isso? É esse parece-me, o impasse a que chegamos e para o qual ainda não encontrei resposta.

A ideia fundamental que aqui quis passar aqui foi a de que a necessidade real de uma ética global, universal e imparcial é como um prego que tentamos apertar com a chave de fendas da nossa natureza humana.

Conclusão

Obrigados a superar o impasse
Apesar de ao nível ético haver uma divergência inconciliável causada, como vimos, pelo facto de nem todos valorizarmos as mesmas coisas, o ideal de cosmopolitismo ensina-nos algo que devemos ter sempre presente: a ideia que partilhamos todos a mesma humanidade apesar de não partilharmos os mesmos códigos morais. É deste mínimo ético comum, da ideia de homogeneidade da espécie humana, que devemos partir para tentar resolver alguns dos problemas prementes que se colocam às sociedades actuais. Estes problemas obrigam-nos a superar o impasse entre o ideal cosmopolitista e natureza humana.
Em ?O nosso futuro pós-humano? Francis Fukuyama alerta-nos para os perigos actuais de alguns progressos no campo das biotecnologias (engenharia genética, a neurofarmacologia e as ciências cognitivas) podere vir a alterar drasticamente aquilo que consideramos ser a nossa natureza humana (modelamento genético de fetos, indução de felicidades artificiais por meio de fármacos, prolongamento indefinido do tempo de vida em detrimento da qualidade de vida e do bem-estar social, etc.). O consequente abismo moral desse ?futuro pós-humano? obrigar-nos-á, em breve, a tomar posições éticas que fundamentem opções políticas de compromisso.

Outro problema grave que a ideia de cosmopolitismo pode ajudar a combater é o problema da fome nos países de terceiro mundo. A ideia que a miséria humana e a fome são um mal objectivo, não é passível de discussão ética. Estes problemas não são um problema ético, são um problema, ponto final. Partindo da ideia cosmopolitista de uma humanidade partilhada segundo a qual todos partilhamos das mesmas necessidades e preocupações, a obrigatoriedade do combate à miséria humana e à fome deve ser considerado um dado ético adquirido, objectivo e universal. A ideia de que a fome e a doença no terceiro mundo são uma epidemia que deve ser combatida é uma forma de pensamento cosmopolitista que ultrapassa quaisquer diferendos éticos que possam subsistir.

Aplicar no terreno (i.e. politicamente) estes ideais cosmopolitistas, implementando instituições que regulem o bom e o mau uso das tecnologias (Fukuyama, p.29), ou implementando políticas económicas como a proposta por Singer de os países ricos destinarem 1% do seu PIB ao combate à miséria e fome nos países do terceiro mundo (Singer, p. 261), é uma obrigação moral para as sociedades actuais.

A verdade é que vivemos todos num só mundo, somos uma humanidade inextrincavelmente ligada para o bem e para o mal e, como tal, é bom que nos entendamos se não eticamente, pelo menos humanamente. A ideia fundamental a reter aqui é que só temos, de facto, uma chave de fendas para trabalhar, mas o prego tem mesmo de ser apertado.

Tomás Magalhães Carneiro