Via da Verdade |
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sábado, março 15, 2003
“O ano da morte de Ricardo Reis” de José Saramago Comecei a ler “O ano da morte de Ricardo Reis” com o interesse de aprofundar o conhecimento deste heterónimo do Pessoa. De nada valeu. Saramago não procurou aprofundar a personagem (como também não o fez com qualquer outra personagem do livro) o seu comportamento é neutro, distante e difuso. A personagem Ricardo Reis, que conhecemos, vive mais das citações de poemas seus que da acção da personagem em si mesma. No fim da leitura deste livro, fiquei com a impressão que este não tratava de Ricardo Reis, ou pelo menos trata pouco do Ricardo Reis, mas antes do ano da sua morte – como uma análise primária do título nos diz. “O Ano da morte de...” Uma leitura, também primária, da obra, pouco mais revela que uma data de colagens de jornais da época, citações de poemas de Reis e Pessoa, um óbvio caminhar na sombra destas duas personagens, intercalados por momentos pretensamente profundos, normalmente apresentados sobre a forma de potenciais diálogos, em hipotéticas situações. Filosofia de pacotilha a que já nos habituou Saramago. O “Ano da Morte de Ricardo Reis” podia ser um conto interessante (entre as 50 e 100 páginas), mas as exigências do mercado (“Precisamos de um livro no valor de 3 contos = mais de 300 páginas”) transformaram-no num livro soturno, vago e mal elaborado. Não consigo ganhar afecto às personagens do Saramago, todas elas parecem ter sido metidas lá por acaso, exceptuando, neste livro, Lidia (e Fernando Pessoa) a quem Saramago deu o papel do Caeiro feminino, com a última palavra sobre o que “as coisas são.” Também não gosto da sua técnica. O texto denso, compacto revela, a meu ver, a sua incompetência para a comunicação em prosa (a mais difícil das técnicas de escrita), e as suas introspecções (ia dizer pseudo-proustianas, mas como não encontrei a mais vaga semelhança literária entre Saramago e Proust, fiquei-me pela hesitação) em forma de extensos diálogos prováveis, cansam, são a maior parte das vezes inoportunas, mostram que o autor não teve tino na pena, induzem a confusão de planos narrativos e só servem para a dispersão geral da obra (o exemplo máximo desta dispersão, em Saramago, encontrei nos “Evangelhos Segundo Jesus Cristo” – Jesus Cristo!!). Mas por outro lado, talvez esta dispersão tenha sido propositada, de modo a apagar o Ricardo Reis, não mexer muito nele, e colocá-lo apenas como testemunha acrítica dos acontecimentos do ano da sua morte: Guerra Civil em Espanha, servilismo do Estado Novo ao fascismo e ao nazismo, etc. Quanto à história em si:Porque é que Saramago fez sobreviver Ricardo Reis ao Pessoa? Os diálogos entre os dois (Fernando Pessoa, depois de morto, continua a visitar Ricardo Reis) aparece a ricardo Reis), são na sua grande parte inconsequentes, porém, Pessoa faz notar algumas vezes que a vivência do Reis médico, indivíduo, está em contradição com o que diz o Reis poeta. A meu ver, Saramago diz-nos que ninguém poderia ser tão espartano, tão racional, tão estóico e conformado como o Reis das Odes. Os nove meses que Saramago permitiu que Reis sobrevivesse a Pessoa permitiram aquele encontrar uma Lidia carnal, genuína, que não a etérea e distante musa dos seus poemas. Saramago trouxe de volta Ricardo Reis do seu exílio no Brasil, que era ao mesmo tempo afastamento da pátria e afastamento dos homens – “Ver a vida à distância.”. Proporcionou-lhe em Lisboa uma existência concreta, verdadeira, imediata, em contacto com o sexo, o amor e a morte. Não haja dúvida que dos três grandes heterónimos de Pessoa, Ricardo Reis era o que mais necessitava deste choque com a realidade.
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