Via da Verdade |
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sábado, março 15, 2003
"Se isto é um homem" de Primo Levi: -Pode alguém ter sido Homem em Auschwitz? Podemos dizer que é esta a interrogação fundamental do impressionante “Se é isto um homem”, de Primo Levi. Figura essencial da literatura italiana do pós-guerra, ao lado de outros como Italo Calvino ou Cesare Pavese, Levi é um judeu que sobreviveu “por sorte” aos campos de extermínio nazis, e que dedicou o resto da sua vida a tentar responder à “pergunta essencial” de Auschwitz: “O que é um homem?” Mais do que uma descrição dos horrores do quotidiano num campo de extermínio, “Se isto é um homem”, é um impressionante estudo daquilo em que os homens podem transformar outros homens, e da luta constante destes últimos para não deixarem de o ser: “...exactamente porque o Lager (campo de concentração) é uma grande máquina de nos reduzir a animais, nós não devemos tornar-nos animais.” Para Levi, em Auschwitz, tal não foi possível. Aqui, (como em outros campos de extermínio) a grande máquina ideológica alemã, deu estrutura e corpo a todas aquelas crenças e dogmas, que todos os homens têm em relação a outros homens, mas geralmente de forma escondida, vaga e difusa, e organizou-as de forma a levá-las até às suas últimas consequências. O Nazismo é, por isso mesmo, a soma de todas aquelas características, presentes em todos nós, que juntas formam o Mal, tal como o podemos conceber. Auschwitz, foi o resultado dessa soma. Levi analisou esse resultado e questionou-se sobre: “o que resta de um homem quando todas as condições de existência humana lhe são subtraídas?” Ao ler “Se isto é um homem” chegamos à conclusão que não resta nada. Em Auschwitz, Levi era Häftlengue, a posição mais baixa na hierarquia do campo, composta por Kapos, criminosos, políticos, especialistas... Curiosamente, os SS´s raramente são referidos. A sua presença é constante, mas distante. Encimam as torres de vigia, assistem às execuções e participan nas selecções dos prisioneiros que vão para as câmaras de gás, mas a vida no campo é gerida totalmente entre os prisioneiros, e é a luta diária para subir na hierarquia do campo que vemos aqui relatada. O Lager pode ser visto como um laboratório sinistro da vida real, e os prisioneiros pequenas cobaias insignificantes, sob o jugo nazi. O Homem, como indivíduo, morreu em Aushwitz e, em seu lugar, nasceu uma massa informe, cinzenta e macerada, de milhares de imundos sacos vazios que se arrastavam : “Tem 30 anos mas, como todos nós, poderia dar-se-lhe entre 17 e 50.” Apesar de morto, o Häftlengue 174 517, conseguia por vezes vislumbrar algo de uma humanidade que persistia para lá do arame farpado. Graças à bondade desinteressada de Lorenzo, um trabalhador civil de fora do campo que, arriscando a sua própria vida, fez com que Levi enviasse uma carta para casa, trazendo-lhe depois a resposta: “aconteceu-me não esquecer que também eu era um homem.” Durante o dia, o Häftlengue 174 517, não sofria, não amava, não esperava, não sentia, não reagia, não vivia. Nos raríssimos intervalos desta “existência negativa”, (segundo Levi, os homens livres não conseguem definir, e muito menos compreender, a “não existência” de um Häftlengue) quando sentia “a dor de recordar o antigo e feroz sofrimento de me sentir homem, que me assalta como um cão no instante em que a consciência sai da escuridão”, Levi o Homem, renascia penosamente, agarrava o caderno e o lápis (roubados da enfermaria) e escrevia “o que não seria capaz de dizer a ninguém”. Há uma segunda pergunta que poderia ser feita a Primo Levi: -Poderá um homem sobreviver ao facto de ter sobrevivido a Auschwitz? A esta pergunta Levi respondeu igualmente que não. Primo Levi suicidou-se no dia 11 de Abril de 1987, com o número 174 517 ainda tatuado no pulso.
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