Via da Verdade |
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sexta-feira, novembro 14, 2003
O que é a filosofia? - por Paulo Ghiraldelli 1) Admiração e Desbanalização Platão e Aristóteles deram à filosofia uma de suas melhores definições. Eles viram a filosofia como um discurso admirado e/ou espantado com o mundo. É difícil abandonar a idéia, dos clássicos gregos, de que um discurso que fala sobre o mundo e que responde questões do tipo "o que é um raio?", "como acontece um raio?", é um discurso curioso, como discurso da ciência, mas que não denota alguém tão admirado e/ou tão espantado quanto aquele que pergunta "o que é o que é?"; esta é uma pergunta do discurso filosófico. As perguntas da filosofia mostram uma atitude de máxima admiração, pois demonstram inquietude com aquilo que até então era o mais banal. Se alguém pergunta "o que é que é?", este alguém está criando a desbanalização de algo super banal, que é a condição de ser, o que até então não havia preocupado ninguém. Nós, por exemplo, estamos cotidianamente preocupados em saber coisas que não sabíamos. Agora, perguntar pelo ser das coisas que queremos saber o que são, nos parece meio fora de propósito. Por que teríamos de perguntar pelo que é tão banal? Ora, o que a filosofia faz, na acepção tradicional que vem de Platão e Aristóteles, é justamente isto: ela põe certas perguntas que nos obriga a olhar o banal como não mais banal. A filosofia, então, é o vocabulário com o qual desbanalizamos o banal. Tudo com o qual estamos acostumados, fica sob suspeita, sob o crivo de uma sentença indignada, e então deixamos de nos ver acostumados com as coisas que até então estão estávamos acostumados! 2) O Saber Ignorante Todavia, creio que se fosse perguntado a Sócrates "o que é a filosofia?", ele, se viesse a entender a pergunta, não a responderia como Platão e Aristóteles, ainda que não os desmentisse. Sócrates esteve mais disposto a fazer filosofia do que erigir uma discussão meta-filosófica. Estava disposto a fazer da filosofia um trabalho com conseqüências drásticas. Ele não estava interessado na admiração ou no espanto com o que é banal no mundo, mas motivado a ver a desbanalização do que poderia ser tomado como banal para si mesmo e para outros homens: a condição de cada um a respeito do que sabe sobre o mundo e sobre si mesmo em relação à conduta na vida prática, na vida moral. No jogo de perguntas e respostas para cada transeunte de Atenas, Sócrates não tinha respostas para nada, ainda que tivesse um bom número de perguntas cujo objetivo era levar seus interlocutores a perceberem que o que sabiam do mundo e de si mesmos, especialmente no campo das verdades morais, era muito pouco, e que a condição de sábio, aquele que poderia se auto-conhecer, só era justificável por aqueles que sabiam que nada sabiam. A Critica da Razão e da Racionalidade Entre a desbanalização do banal e o auto-conhecimento que leva a se saber ignorante, há ainda uma outra acepção de filosofia, que apareceu na modernidade. Trata-se da filosofia como um discurso da razão enquanto crítica da razão. Kant foi quem acreditou que o papel da filosofia era o de crítica de tudo aquilo que ela, e não só as ciências, poderiam dizer. Ele se propôs, então, a colocar a razão em um tribunal um tanto esquisito, uma vez que a razão estaria nele como ré e juiz ao mesmo tempo. Foi a época na qual a filosofia se transformou, basicamente, em epistemologia, perguntando não mais coisas a respeito do mundo (humano, social, físico), mas sim, especificamente, sobre o conhecimento; ou mais exatamente sobre as condições do conhecimento e da normatividade, sobre os limites da razão na sua tarefa de produção do saber e de delimitação das normas de conduta. Kant perguntou sobre as condições do conhecimento e da liberdade de agir e, assim, elaborou a crítica da razão, tanto da razão teórica, a que conhece, quanto da razão prática, a que julga e que é responsável pela conduta moral, sendo que também esboçou algo semelhante em relação ao aparato capaz de fazer juízos estéticos. Mas Kant fez essa crítica, em grande medida, sem levar suficientemente a sério a história. Ora, Marx, por sua vez, tendo lido Hegel, o filósofo que racionalizou a história e historicizou a razão, levou adiante a idéia da filosofia de Kant como uma busca pela crítica da razão, mas uma razão banhada na racionalidade dos homens no mundo histórico. Daí que a crítica de Marx não era somente uma crítica da razão, tomada em um sentido epistemológico puro, mas a crítica da racionalidade da vida humana enquanto vida social e econômica. Não à toa, portanto, a obra máxima de Marx, O Capital, vinha com o subtítulo "crítica da Economia Política". A racionalidade humana enquanto impregnada no âmbito sócio-histórico havia sido descrita pelos teóricos da "Economia Política", mas Marx achava que eles não haviam levado em conta um estudo crítico, ou seja, um estudo capaz de revelar limites, condições e pressupostos de suas próprias conclusões. O conhecimento da vida econômica e social dos homens deveria passar por uma atividade que, hoje, podermos chamar de epistemologia social crítica. 3) A Terapia da Linguagem Os filósofos do Círculo de Viena e Wittgenstein fizeram uma revolução na filosofia. Para eles as atividades de desbanalização, de adquirir o saber ignorante e de crítica só tinham algum sentido se fosse levado em conta que tudo isso estava impregnado da idéia de que a filosofia, desde sempre, procurou por algo que, talvez, não fosse lá muito correto de se procurar: um ponto arquimediano, ou seja, uma âncora que ligasse pensamento ou linguagem ao mundo. Em outras palavras, a filosofia teria sido, de alguma forma, desde sempre, uma metafísica, e a metafísica seria apenas um grosseiro erro provocado por uma linguagem excessivamente rebuscada. A filosofia, ao ter se dedicado à busca de fundamentos metafísicos que envolviam a criação de uma linguagem descuidada, teria se enredado em um sem número de problemas, todos eles, na verdade, pseudo-problemas, pois adviriam de confusões criadas por um uso indevido das palavras, sentenças, proposições etc. Alguns desses filósofos acreditaram que a filosofia poderia ainda ser crítica, mas crítica da linguagem, de modo a revelar o que é que haveria de puro e realmente sólido por baixo de tantas frases meramente alusivas, metafóricas etc, na nossa linguagem, tanto quando falamos no cotidiano quanto quando falamos cientificamente. Outro grupo nunca achou que a atividade de análise da linguagem, que seria então a atividade par excellence da filosofia, deveria cumprir uma função crítica, desveladora, iluminista, mas que ela seria, sim, apenas uma terapia da linguagem: ela teria menos a ver com "resolver problemas" e mais a ver com "dissolver pseudo-problemas". De Nietzsche aos positivistas lógicos e filósofos analíticos do século XX, muitos quiseram ver o fim da metafísica adotando uma postura que incidiu em colocar a linguagem na sala de cirurgia. 4) A Redescrição de Nós Mesmos e a Liberdade Quando perguntaram a Richard Rorty qual era o livro mais importante do século XX, ele citou as obras de Freud que mudaram a imagem que tínhamos de nós mesmos. Certamente, se a conversa fosse sobre outros séculos, Rorty teria falado de Darwin, de Jesus etc., ou seja, todos aqueles que contribuíram para gerar discursos capazes de descrições inovadoras sobre nós mesmos, os "bípedes sem penas". A tarefa da filosofia, para o neopragmatismo de Rorty, é basicamente a tarefa de poder nos dar imagens de nós mesmos com as quais possamos estar mais seguros de que temos mais potencialidades do que até então contávamos para nós mesmos. Sendo assim, a tarefa da filosofia seria a de colaborar com um discurso que nos convencesse continuamente de que podemos ser mais livres. Rorty, como Hegel, gosta de ver a história como caminhando em direção à liberdade, ainda que diferentemente de Hegel ele não acredite que a história tenha um caminho. Mais e mais liberdade, para Rorty, é algo que só pode ser alcançado se sobrepusermos imagens sobre nós mesmos que nos convença que podemos ser mais do que somos: mais plurais, leves, soltos, audaciosos, diferentes, livres, enfim, capazes de usar dessa liberdade para a construção de sociedades democráticas onde sejamos mais diferentes, mais livres, mais plurais, mais leves, mais soltos e mais audaciosos. Todavia, diferente de toda e qualquer outra filosofia ou doutrina, esta não seria uma doutrina sobre o que é o mundo, capaz então de nos dizer que nossa ação está fundamentada, mas sim uma teoria sobre nós e o mundo que funcionaria ad hoc. Assim sendo, como teoria ad hoc, ela não poderia ser desbancada com a acusação de querer fundamentar qualquer saber, reivindicando para si a falsa legitimidade de um saber de segunda ordem, eleito por si mesmo. Rorty pretende sair do eterno círculo denunciado pelos filósofos da Escola de Frankfurt, por Foucault e por Derrida, que faz da filosofia não instância de saber mas, sim, instância de poder. Como teoria ad hoc ela seria bem mais útil. A filosofia deve ser uma dessas descrições? Creio que sim e não. Ela pode ser, dependendo de como conversamos e do que queremos fazer, o conjunto dos objetivos postos por cada uma dessas acepções. Isso nos levaria a cair em contradições e, enfim, deixarmos de agir filosoficamente? Se não tomarmos cuidado, sim, mas se formos inteligentes, não. Paulo Ghiraldelli Jr, 2002
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