Via da Verdade

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sábado, março 13, 2004
 
Em 7 "Cartas sobre o Aborto" publicadas na Revista Crítica entre 2 e 8 de Março, Pedro Madeira mostrou como é que deve ser feito o debate sobre questões éticas sensíveis como o aborto: filosóficamente.
Ficam aqui as 3 últimas cartas do argumento do Pedro (as 4 primeiras tratam de expôr "Alguns Maus Argumentos" normalmente usados pelos defensores e opositores do aborto) do qual podemos avançar desde já a conclusão:
o aborto deve ser legalizado até às vinte e cinco semanas. Penso que o melhor a fazer é simplesmente legalizar o aborto sem recorrer a um novo referendo.

Aborto: Os dois principais argumentos contra o aborto (5)


Como prometido, digo hoje qual é a minha posição em relação à legalização do aborto. Por razões que passarei a explicar, sou a favor.

De um modo geral, podemos dizer que há basicamente dois tipos de argumentos na bibliografia de bioética que procuram mostrar que o o feto tem o direito à vida, pelo que o aborto é imoral: o argumento da potencialidade, e aquilo a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos". A parte negativa da minha argumentação será a de tentar mostrar que ambos os argumentos são maus — é o que farei hoje. Amanhã, direi qual é a altura a partir da qual penso que devemos considerar que o feto tem o direito à vida e explicarei porque é que acho que todos os outros critérios estão errados. Essa será a parte positiva da minha argumentação.

Os argumentos que fazem uso da potencialidade geralmente têm a seguinte estrutura: o feto é, em potência, um ser humano; todos os seres humanos, quer sejam apenas seres humanos em potência ou não, têm o direito à vida; logo, o feto tem o direito à vida. Este é um mau argumento porque foge à questão. Aquilo que está em disputa é a segunda premissa: não é, por isso, permissível incluí-la num argumento. E é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas. Poderá ser objectado que estou simplesmente a fugir à questão: a analogia não funciona — o feto tem o direito à vida desde a concepção, mas eu só adquirirei o estatuto de Comandante Supremo das Forças Armadas caso venha a ser eleito Presidente da República. O problema com esta objecção é que foge, ela própria, à questão! Se estivéssemos desde logo a partir do princípio de que o feto tem o direito à vida desde a concepção, então para que é que precisaríamos de invocar o estatuto de potencialidade do feto?

Aquele a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos" faz o percurso inverso. Primeiro, nota-se que a criança, quando nasce, tem o direito à vida. Depois, acrescenta-se que não há grande diferença entre a criança dois minutos antes de nascer e agora, que acabou de nascer. Isso significa, certamente, que tinha o mesmo direito à vida dois minutos antes de nascer. E, se a coisa é assim, então certamente também teria o direito à vida quatro minutos antes de nascer. E por aí fora até ao momento da concepção. (A concepção não é um processo instantâneo, como alguns parecem pensar; já expliquei isto na segunda carta, e aprofundarei amanhã.) Este argumento é falacioso. Para ver que é, basta pensar no seguinte argumento análogo, que é claramente falacioso:

O Jorge não é careca; o Zé tem menos um cabelo na cabeca do que o Jorge; logo, o Zé também não é careca. O Eduardo tem menos um cabelo na cabeça do que o Zé; logo, o Eduardo também não é careca. E, como a diferença de um cabelo não parece ser suficente para delimitar a fronteira entre os carecas e os não carecas, chegamos ao caso do Manuel, que não tem qualquer cabelo na cabeça. Para sermos consistentes, devemos dizer que o Manuel também não é careca, o que é claramente falso.

Em ambos os casos, a falácia é a mesma. O facto de haver casos de fronteira não significa que não haja casos em que seja fácil dar uma solução. O facto de haver pessoas acerca das quais não saberíamos bem dizer se são ou não carecas não significa que não haja pessoas que são decididamente carecas ou decididamente não carecas. Do mesmo modo, do facto de que um recém-nascido tem o direito à vida não se segue que um feto de dois meses tem o direito à vida.

Amanhã, passarei em revista os principais critérios propostos na bibliografia para explicar a partir de que altura é que o feto tem o direito à vida e direi qual me parece o mais adequado.

Aborto: Direito à vida a partir de quando? (6)

1. Sobre o defensor da legalização do aborto recai o fardo de explicar em que altura o feto passa a ter o direito à vida, dado que temos de aceitar que tanto um ser humano adulto como uma crianca recém-nascida têm o direito à vida. Há varios critérios propostos na bibliografia, sendo que os seguintes são os mais comuns: concepção; implantação; forma humana; aceleração; actividade cerebral inicial; actividade organizada do córtex cerebral; viabilidade. Sou a favor do critério da actividade organizada do córtex cerebral. Vou rapidamente passar em revista todas as posições e explicar porque é que esta posição parece a correcta. Há ainda outra posição: o gradualismo. De acordo com o gradualismo, o feto vai progressivamente adquirindo direitos ao longo do tempo. Tanto quanto pude perceber, o gradualismo não recebe grande atenção na bibliografia de bioética. Direi por que penso que isto sucede mais abaixo. Olhemos, então, para os vários critérios que têm sido propostos na bibliografia de bioética para decidir a partir de que altura é que o feto começa a ter o direito à vida.

Concepção

Como já tive oportunidade de mencionar noutra carta, muitas pessoas parecem pensar que há um momento concreto em que se dá a concepção; mas tal é falso. A fertilização é um processo gradual que demora cerca de 22 horas. Primeiro, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando a cauda do lado de fora. Nas horas seguintes, o espermatozóide e o óvulo são, ainda, duas coisas distintas, embora o espermatozóide já esteja dentro do óvulo. Só ao fim das ditas 22 horas é que já temos um único objecto: o zigoto. Mas vamos fingir que não há esta dificuldade: vamos fingir que há um momento concreto em que se dá a concepção. Ainda assim, a concepção não poderia marcar o momento em que o feto adquire o direito à vida. Presumivelmente, um bebé recém-nascido e um ser humano adulto têm algo em comum que lhes garamte a ambos o direito à vida. O que é que o zigoto teria em comum com um bébé recém-nascido e com um ser humano adulto que bastaria para lhe atribuirmos, igualmente, o direito à vida? Não conheco qualquer resposta convincente. O opositor do aborto que favorece o critério da concepção geralmente tenta usar o argumento da potencialidade para mostrar que o zigoto tem o direito à vida. E esse argumento, como já vimos, é muito fraco.

Implantação

A implantação é a altura em que aquilo que virá a ser o feto se "agarra" à parede do útero. Isto geralmente acontece seis a oito dias após a fertilização. É facil ver que a implantação não pode ser o critério correcto. O que é que não existe, no quinto dia, que passa a existir no sexto? Aparentemente, nada. Ocorrem alterações hormonais no corpo da mulher, mas não é claro que relevância moral isto possa ter.

Forma humana

O feto comeca adquirir forma humana por volta das seis a oito semanas. Até essa altura, podia parecer apenas "um amontoado de células", como os defensores da legalização costumam dizer, agressivamente. Poderá ser o facto de que o feto adquire forma humana que lhe garante o direito à vida? Não. Se uma avestruz passasse pelas mãos de um cirurgião talentoso e adquirisse forma humana, acha mesmo que adquiriria, só por isso, o direito à vida? Não — se já não o tinha antes, não era agora que ia passar a tê-lo.

Aceleração ("quickening")

Normalmente, a mãe começa a aperceber-se dos movimentos do feto por volta das 16/17 semanas após a fertilização. Há pessoas que defendem que é aqui que o feto comeca a ter o direito à vida porque é precisamente na altura em que a mãe sente o feto "a dar pontapés" que se cria uma empatia especial entre ela e o feto. Este também é um mau argumento. O facto de um ser ter ou não o direito à vida não pode estar dependente de termos ou não empatia para com ele (ou ela). Se não podemos dizer que o feto começa a ter o direito à vida quando começa a mexer-se, então também não podemos dizer que começa a ter o direito à vida quando a mãe se apercebe, pela primeira vez, desse movimento.

Actividade cerebral inicial

Na maior parte dos casos, o feto comeca a revelar indícios de actividade cerebral entre as 6 e as 10 semanas. É importante especificar o que queremos dizer quando falamos em actividade cerebral. Entre as 6 e as 10 semanas, o que comeca a haver é actividade eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro. Mas isto, por si só, é um dado desinteressante. Há actividade eléctrica em todas as células do corpo humano. O facto de haver actividade eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro não significa que ali se esteja a passar algo de moralmente relevante. Não tenho dúvida de que o desenvolvimento do cérebro está relacionado com a aquisição do direito à vida por parte do feto — mas o tipo de actividade cerebral registada a partir das 6/10 semanas não é suficiente para que tal suceda. Nessa altura, a única parte do cérebro que está mais ou menos desenvolvida é a que se ocupa de funções básicas, como o ritmo cardíaco e a respiração.

Actividade organizada do córtex cerebral

De acordo com uma estimativa conservadora, o feto comeca a ter actividade organizada do córtex cerebral algures entre as 25 semanas e as 32 semanas. (Uma estimativa menos conservadora diria que só às 30 semanas essa actividade tem início.) É a partir desta altura que as ligações sinápticas entre células cerebrais individuais começam a estabelecer-se — até esta altura, essas células eram pequenas ilhas, por assim dizer. Começa a ser possível captar as ondas cerebrais do feto através de electro-encefalogramas. Argumentavelmente, é sensivelmente a partir desta altura que o feto começa a pensar e a ter consciência, algo que tanto um ser humano adulto como um bébé recém-nascido têm (embora em graus diferentes, obviamente). É por isso que penso ser nesta altura que o feto adquire o direito à vida. Uma objecção perspicaz a este critério é a de que adoptá-lo parece implicar que as pessoas em coma não têm o direito à vida. Uma resposta curta a esta objecção seria a seguinte: Quem tiver lido a quarta carta lembrar-se-á de que estabeleci uma distinção útil entre potencialidade no sentido forte, e potencialidade no sentido fraco. Essa mesma distinção volta a ser pertinente agora. Tanto o feto antes das 25 semanas como o comatoso são potencialmente seres conscientes. No entanto, são-no em sentidos diferentes. O comatoso é potencialmente um ser consciente num sentido mais forte do que aquele em que o feto é potencialmente um ser consciente. O comatoso é como uma pessoa que sabe francês, embora não esteja a falar francês neste momento, e o feto é como uma pessoa que ainda não aprendeu a falar francês. Como a situação do feto antes das 25 semanas e a do comatoso diferem num aspecto relevante (são ambos potencialmente conscientes, mas em sentidos diferentes), o argumento por analogia não colhe.

Viabilidade

Diz-se que um feto se torna viável quando pode sobreviver fora da barriga da mãe (ainda que com recurso a cuidados médicos), o que acontecerá algures entre as 20 e as 23 semanas. Argumenta-se por vezes que a viabilidade do feto marca a altura em que o feto adquire o direito à vida, dado que a partir desta altura o feto já não necessita da mãe. Este critério sofre de um problema óbvio: a altura da viabilidade do feto é determinada pelo estado da tecnologia existente. Isso torna arbitrária a adopção do critério da viabilidade. No futuro, a viabilidade pode passar a ser mais cedo — mas isso não significa que o feto adquira o direito à vida mais cedo.

Uma perspectiva diferente: o gradualismo

Há ainda uma última posição que, tanto quanto me pude aperceber, não é muito discutida na bibliografia de bioética, mas que aparece, de vez em quando, em debates públicos: o gradualismo. O gradualismo é a posição de que o direito à vida é uma questão de grau, e que o feto vai progressivamente adquirindo maior direito à vida à medida que a gravidez avança no tempo. Há um sentido trivial em que concordo com o gradualismo: a partir da vigésima quinta semana, o feto vai adquirindo progressivamente maior direito à vida, e, em termos morais, matar um feto com 30 semanas não é, certamente, a mesma coisa que matar um feto com 40 semanas. No entanto, não é possível usar o gradualismo para argumentar a favor da posição de que o zigoto tem o direito à vida. Ao usar esta linha de argumentação, uma pessoa estaria a cair, subtilmente, no erro de usar o chamado "argumento dos dois minutos", que, como já vimos, é falacioso.

2. A minha posição não é facilmente rotulável. Dado que acho que há uma altura a partir da qual é imoral abortar, não me considero "pró-escolha". E, dado que acho que é moralmente permissível abortar até certa altura, também não me considero "pró-vida". Se pensarmos que temos de ser ou pró-vida ou pró-escolha, então ficamos perante um grande dilema. Se somos pró-escolha, ficamos com a dificuldade de explicar porque é que o infanticídio não é permissível, dado que seria permissível abortar no nono mês. Se somos pró-vida, ficamos sem nenhuma história para contar para explicar porque é que o zigoto tem o direito à vida — só podemos bater na mesa e repetir que o aborto vai contra a dignidade da pessoa humana. Ao apoiar um critério que me parece convincente, escapo ao dilema.

3. Dado que há inumeros critérios possíveis para definir a partir de que altura o feto tem o direito à vida, os opositores da legalização costumam reclamar que, se nem os defensores da legalização estão de acordo acerca do critério a usar, segue-se que devemos ser cautelosos e tratar o feto como se tivesse o direito à vida desde a concepção. Esta objecção falha o alvo. É verdade, sim, que há desacordo entre os defensores da legalização acerca de qual o critério a usar. Mas a única coisa que daqui se segue é que não se pode recorrer a argumentos de autoridade para defender um dado critério. É uma regra elementar da argumentação que não é permissível usar um argumento de autoridade para tentar estabelecer uma dada conclusão quando as autoridades não estão de acordo entre si. No entanto, daqui não se segue, de modo algum, que um critério particular seja tão bom como qualquer outro. E, de facto, acabei de falar dos critérios mais debatidos na bibliografia e, como se pôde ver, só um deles parece defensável. Seja como for, amanhã olharei para este argumento da cautela em maior pormenor e explicarei por que acho que não colhe.


Aborto: Será melhor não legalizar por uma questão de cautela? (7)


1. Ao longo da última semana, tenho vindo a discutir vários argumentos a favor e contra o aborto. Hoje, porém, vou analisar um argumento especial que os opositores da legalização costumam usar em desespero de causa. Este argumento não procura estabelecer que o aborto é imoral, mas apenas que o aborto não deve ser legalizado porque o debate acerca da moralidade ou imoralidade do aborto é inconclusivo.

A estratégia argumentativa é a seguinte: Se o aborto é moralmente permissível, então ao tomar a atitude de não legalizar o aborto estaremos apenas a dificultar desnecessariamente a vida às mulheres que pretendiam abortar ("dificultar a vida" é um eufemismo, obviamente). Por outro lado, caso o aborto seja imoral, estaremos a autorizar um assassínio em larga escala. O problema com este argumento é o de que toma a seguinte forma: "podemos achar que os argumentos contra a permissibilidade moral da prática X não são convincentes; no entanto, como as consequências morais de X ser imoral seriam terríveis, mais vale abstermo-nos de realizar X". Este é um princípio de decisão a que é comum chamar "princípio de eliminação do risco". A ideia é simples: imagine que o leitor tem várias opções disponíveis. Uma delas tem a possibilidade ínfima de causar um desastre. Por isso, o leitor deve abster-se de escolher esta opção. Não é dificil perceber porque é que não devemos empregar este princípio. Imagine que o leitor é presidente de uma empresa que vende champôs ao domicílio. Um dos seus vendedores vem ter consigo, com ar solene, mas cauteloso, e diz-lhe que acha que a empresa devia deixar de vender o champô "Charmoso". Perplexo com este comentário, dado que o champô Charmoso é, precisamente, o champô mais popular junto dos consumidores, pergunta-lhe, inquieto, quais as suas razões. O vendedor diz-lhe que duas pessoas foram atropeladas, no mesmo dia, logo após usar o dito champô, pelo que a empresa corre o risco de ser processada por vender um champô que dá azar aos utilizadores.

Como é óbvio, este é um argumento nada convincente. A coisa certa a fazer é, sem dúvida, continuar a vender o champô Charmoso. É extremamente escassa a probabilidade de que seja um dia aprovada uma lei (com efeitos retroactivos, ainda por cima) que permita processar uma empresa por vender produtos azarentos. E a probabilidade de que o champo Charmoso seja mesmo azarento é mais escassa ainda. O problema com o princípio de eliminação do risco está agora à vista: o princípio pede-nos que negligenciemos a qualidade dos argumentos apresentados. Se houver um argumento qualquer a defender que X é uma consequência possível de fazer Y e que X é uma coisa terrível, então, por pior que esse argumento seja, o melhor é mesmo não fazer Y. Este é um princípio que não parece lá grande ideia adoptar. O princípio só entra em cena se houver um empate entre os argumentos a favor da posição de que X é uma coisa terrível e os argumentos a favor da posição de que X não é uma coisa terrível. Quando não se mostrou que há esse empate, é falacioso invocar o princípio de eliminação do risco.

O leitor poderá achar, contudo, que usei o exemplo de uma decisão comercial, ao passo que o princípio se aplica, fundamentalmente, a questões éticas. Esta não é uma crítica justa, dado que a objecção que apresentei contra o argumento é igualmente pertinente quer tentemos aplicá-lo na vida de uma empresa, quer na nossa vida ética quotidiana. Um princípio de decisão aplica-se, supostamente, a todas as decisões que temos de tomar no dia-a-dia, quer estejam relacionadas com a nossa vida moral ou não. Mas vou, ainda assim, tomar esta preocupação em linha de conta e apresentar um exemplo de uma questão ética em que o princípio poderia ser empregue.

Imagine, então, que aparecia alguém a dizer que as árvores têm direitos. Nesse caso, ele poderia apelar ao princípio de eliminação do risco e dizer: "vocês podem achar que os meus argumentos não são muito convincentes; no entanto, pensem nas terríveis consequências morais de eu estar certo. Estaríamos a autorizar anualmente o assassínio de milhões de arvores inocentes pelo mundo inteiro." Se aceitássemos o princípio de eliminação do risco, então seríamos forçados a deixar de deitar abaixo árvores. Mas não há qualquer razão para fazermos isso, dado que os argumentos a favor da posição de que as árvores tem direitos não são convincentes. As pessoas podem reclamar que o caso das árvores não é semelhante ao do feto, pelo que a analogia não funciona. Não é semelhante? Se o leitor pensa isso, é porque está implicitamente a partir do princípio de que o aborto é imoral. No entanto, como já tive oportunidade de mostrar, não há um empate entre os argumentos a favor da posição de que o aborto é uma tragédia moral e os argumentos a favor da posição de que o aborto não é uma tragédia moral. Pelo contrário — tanto os argumentos frequentemente usados em debates públicos como os principais argumentos usados na bibliografia de bioética parecem maus. E, embora alguns argumentos apresentados a favor da legalização do aborto sejam maus, há outros que parecem decisivos. Os argumentos não são como maçãs num cabaz: a "podridão" — passe a expressão — de uns não afecta a qualidade (boa ou má) dos outros. (O facto de muitos dos argumentos a favor de uma dada posição serem nitidamente maus pode provocar um preconceito espontâneo contra uma posição, mas essa é outra história.) Concluindo: é falacioso estar a usar o princípio da eliminação do risco para argumentar que, por uma questão de precaução, o aborto não deve ser legalizado, dado que não há um empate entre os argumentos contra e a favor.

2. A quem queira ter uma posição informada acerca do assunto, aconselho dois livros. Em primeiro lugar, Ethics in practice: an anthology, organizado por Hugh LaFollette, tem uma secção acerca do aborto que contém quatro artigos, sendo que dois deles são já classicos: "A Defense of Abortion", de J. J. Thomson, e "An Argument that Abortion is Wrong", de Don Marquis. É um escândalo que um livro destes ainda não esteja publicado em Portugal. Não admira que, em termos de divulgação da bioética, ainda estejamos na idade da pedra. Em segundo lugar, A Defense of Abortion, de David Boonin, é a defesa mais convincente (e exaustiva) do aborto que já alguma vez li, e a minha discussão do aborto foi muito influenciada pelo livro. Como foi publicado recentemente (2003), achei por bem retirar daqui todos os dados científicos de que necessitei. Alguns dos argumentos que discuti nesta série de cartas não aparecem no livro porque são demasiados maus. Achei por bem discuti-los, ainda assim, porque vêm muito à baila em debates públicos em Portugal.

3. Se o leitor concorda que o aborto deve ser legalizado, então está igualmente ciente de que enfrentamos agora um grave problema político: o referendo foi realizado há apenas 5 ou 6 anos atrás e a resposta foi "não". Se fizermos outro referendo agora, estaremos a desautorizar os votantes, a tratá-los como crianças. Se, por outro lado, o aborto desta vez for legalizado sem recorrer a um referendo, então não se percebe para que se fez o primeiro referendo: bastava ter legalizado logo e pronto. Como as coisas estão é que não podem continuar: o aborto deve ser legalizado até às vinte e cinco semanas. Penso que o melhor a fazer é simplesmente legalizar o aborto sem recorrer a um novo referendo. Nesta altura, alguém poderá objectar que um referendo acerca da legalização do aborto é sempre necessário, tal como um referendo acerca da entrada de um qualquer país na União Europeia é sempre necessário. Discordo. Talvez faça sentido repetir-se um referendo acerca da entrada de um dado país na União Europeia porque as condições de entrada mudam ao longo do tempo. Os cidadãos de um país podem ver que as vantagens de entrar para a União aumentaram, e nesse caso poderão votar a favor da entrada do país na União. No entanto, o caso moral a favor e contra o aborto não mudará substancialmente ao longo dos anos. É por isso que esta é uma decisão que não deve ser deixada aos votantes: a legalização do aborto não deve passar pelo referendo. Seja como for, isso agora é um problema para os politicos.

Pedro Madeira
pedro.madeira@portugalmail.pt

Nota: Estas cartas foram enviadas para publicação ao jornal Público, que até hoje não as publicou.