Via da Verdade

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terça-feira, maio 18, 2004
 
Diálogos entre um neurobiólogo e um filósofo V

O Desejo e a Norma

1. Das Disposições naturais aos dispositivos éticos

Paul Ricouer - Voltemo-nos agora para as origens das nossas condutas morais na evolução das espécies. (...) Temos de conhecer bem a originalidade das categorias próprias da reflexão ética para sabermos se existe um conhecimento neuronal. A priori não contestei a possibilidade de existir algum. Pretendi simplesmente afirmar a autonomia da fenomenologia em relação à ciência neuronal.
No que se refere à origem da moral, estamos perante um caso de amálgama semântica: origem no sentido de antecedência, para falar como Darwin, ou origem como justificação.

Jean-Pierre Changeaux - Amálgama essa que eu não faço. Origem para mim, significa descendência, antecedência e, sobretudo, ponto de partida.

Paul Ricouer - A amálgama de que falei é ainda mais grave quando se trata da palavra fundamento, que tanto pode significar substracto (a base neural, por exemplo) como legitimação a título último. Com este último sentido entramos numa nova problemática, que já não é a problemática da evolução, mas o saber como deve comportar-se a espécie humana.
A grande diferença entre os homens e os animais é que estes são, de algum modo, normados pelo seu equipamento genético, enquanto o mesmo não acontece com os humanos. Como dizia Kant, a natureza deixou-nos à mercê dos seus equipamentos e disposições, e temos de ser nós a ssumir uma actividade estruturante de natureza normativa.

Jean-Pierre Changeaux - O aspecto genético, ou epigenético, na produção e na aquisição das regras morais, insisto, é essencial para a espécie humana.

Paul Ricouer - Para resumir a minha argumentação diria portanto: em primeiro lugar temos o problema da predisposição, em segundo lugar, a necessidade de introduzir o normativo, e em terceiro lugar a necessidade de colocar em sinergia a ordem do desejo e a ordem do normativo.

Jean-Pierre Changeaux - Já focámos amplamento o problema da predisposição. A necessidade de introduzir o normativo, isto é, de produzir regras que limitam o campo das condutas possíveis interpreta-se, em minha opinião, num quadro evolucionista que incorpora a evolução cultural. (...)A normatividade permite uma economia de escolha, facilitando a vida do grupo social. São um pronto-a-comportar-se-correcto. Em que medida estas predisposições neurais e comportamentais que participam na elaboração das regras morais vão buscar as suas origens a espécies animais que precederam o homem? É esta a questão que formulo.

Paul Ricouer - Procede portanto retrospectivamente, procurando origens para o nosso projecto humano. O projecto ético assenta, então, numa selecção operada entre as disposições herdadas dos nossos ascendentes. Mas, para ser eficaz, a ética necessita de algo mais que predisposições. Necessita de uma parte institucional e política.

Jean-Pierre Changeaux - Somos ao mesmo tempo seguidores e produtores de regras. Quero compreender como se destaca progressivamente a normatividade a partir das predisposições do cérebro do homem.

Paul Ricouer - Mas esta normatividade não é sustentada por nenhum progresso observado na natureza. Para que a normatividade se liberte, é preciso que ela própria se pressuponha, é uma noção auto-referencial.

Jean-Pierre Changeaux - Em minha opinião, ela não se pressupõe. Constrói-se numa perspectiva histórica com os nossos cérebros de homem capazes de, precisamente, auto-referência. Mas gostaria mais de voltar ao terceiro ponto da sua argumentação, a sinergia entre predisposições favoráveis e as normas. Como descobrir a concordância entre a ordem do desejo e a ordem do normativo?
O quadro evolucionista facilita consideravelmente a definição de níveis de complexidades. Fiz uma reflexão evolucionista e neurobiológica no sentido de distinguir vários níveis na exigência ética e no julgamento moral.

(continua...)