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domingo, abril 02, 2006
 
Globalização ética: condicionalismos, problemas e um impasse (excertos)


Abstract

Este trabalho envereda por duas linhas argumentativas, espero eu, complementares.
Numa primeira linha defendo a ideia que a organização do mundo globalizado tal como o conhecemos é o resultado de uma série de fenómenos sobre os quais os indivíduos exercem pouco ou nenhum controlo. Esta primeira linha pretende enquadrar o trabalho no contexto geral deste seminário - a ideia que dispositivos vários que transcendem o homem, infirmam, coagem e restringem as suas opções e formas de vida.
A segunda linha argumentativa procura apresentar a ideia que a ética surgiu como uma ferramenta para o homem resolver problemas que se lhe deparavam nos ambientes em que evoluiu e que, em resultado disso, é um instrumento insuficiente para resolver os problemas éticos colocados aos indivíduos pela sociedade globalizada. No final argumento a favor da homogeneidade da natureza humana como o mínimo ético comum que nos obrigará a encontrar soluções de compromisso no sentido de se resolverem alguns problemas prementes que se colocam às sociedades actuais.

Introdução

1 -Na primeira parte deste trabalho começo por tentar explicar os condicionalismos que levaram a que tenha sido a ?nossa? cultura ocidental a ser globalizada e não outra cultura qualquer, como a Chinesa, a Neoguineense, a Azteca ou a dos índios Aruáquis da Amazónia. Para esta parte do trabalho baseei-me no livro ?Armas, Germes e Aço? de Jared Diamond

2 -Na segunda parte apresento a religião como uma das forças modeladoras da sociedade ocidental que levaram ao aparecimento de fenómenos sociais como a ciência, a cultura, a técnica e os valores éticos da sociedade capitalista. Foco essencialmente a importância que o ascetismo protestante teve na modelação das mentalidades dos homens e na forma como isso abriu as portas à possibilidade de uma ética para a sociedade capitalista ocidental nos moldes que hoje a conhecemos. A obra tutelar desta secção é o livro de Max Weber, ?A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo?.

3 -Na terceira parte apresento alguns problemas éticos novos levantados pelo facto de vivermos num mundo globalizado a uma escala nunca antes vista. Alguns desses novos problemas éticos são: a necessidade de cuidarmos de uma atmosfera comum, a existência de uma economia comum e a necessidade de uma legislação básica comum a todos os seres humanos. A partir desses dados éticos novos, levantados por Peter Singer na sua obra ?Um só mundo? e por H.P. Martin e H. Shumann em ?A armadilha da globalização?, argumento a favor de uma ética universal e imparcial mais adequada à nova civilização global em que vivemos.

4 -Na quarta parte introduzo a noção de cosmopolitismo e o consequente impasse gerado por esta ideia de humanidade partilhada [a noção aceite por todas as pessoas sensatas de uma homogeneidade da espécie humana] e a constatação da impossibilidade de uma moralidade partilhada. Nesse sentido apresento os argumentos do filósofo inglês Simon Blackburn que no seu livro ?Rulling Passions? toma uma posição humeana acerca da origem sentimentalista e evolutiva da ética e, a partir daí concluo que a natureza humana opõe-se à necessidade (real) de uma ética global.

No final do trabalho defendo a necessidade de se superar esse impasse.

(...)

4 ? Um Impasse: éticas locais, preocupações globais

Cosmopolitismo
A ideia proposta por Peter Singer de que todos os seres humanos partilham uma humanidade comum (ponto 3), pertencem a uma única comunidade (a comunidade humana) e, como tal, devem preocupar-se e ajudar-se mutuamente independentemente da nacionalidade de cada um não é, dizia, uma ideia nova. Esta é a ideia base da noção de cosmopolitismo (do grego kosmopolitês; cidadão do mundo) introduzida no pensamento ocidental pela filosofia estóica e que foi de grande importância na modelação das mentalidades dos cidadãos do mundo greco-romano e da sociedade ocidental que aí teve a sua origem.
Existem diversas formas de colocar em prática os ideais cosmopolitistas, quer politica, económica ou moralmente. No entanto, aquilo que une os autores que defendem uma concepção rígida de cosmopolitismo (e Singer é sem dúvida um deles) é a noção de que as nossas obrigações morais para com os outros não devem ser enviesadas por considerações de cariz paroquial como a pertença a um grupo ou a uma nação que nos sejam mais afins.
É moral ser-se eticamente imparcial?
A ideia que aqui defendo é que uma ética composta por valores que transcendam a família, a tribo, a comunidade, ou a nação, isto é, uma ética universalista e imparcial para com o outro, independentemente das relações de parentesco, amizade, ou nacionalidade, é contra a natureza humana e contra o modo de ser do próprio pensar ético.
Para saber o que é isso do ?modo de ser do pensar ético? julgo que é necessário fazer referência a algumas ideias acerca da forma como tomamos decisões, formamos os nossos valores e agimos de acordo com eles. Seria necessário, para isso, aprofundar um pouco uma investigação acerca da natureza da mente humana, mas isso sairia fora do escopo deste trabalho. Limitar-me-ei a referir dois modelos contrastantes acerca da nossa natureza enquanto seres deliberadores e agentes morais: o modelo sentimentalista de inspiração humeana e o modelo racionalista de inspiração kanteana. Para isso apoiei-me na obra ?Rulling Passions? do filósofo inglês contemporâneo Simon Blackburn. Nos capítulos 7 e 8 desta obra o autor faz uma análise desses dois modelos concorrentes tomando uma posição clara em favor do modelo sentimentalista segundo o qual aquilo que ajuizamos ser moralmente correcto está intimamente ligado àquilo que sentimos, e que foi moldado pelo meio socio-cultural que nos envolve: as relações de amizade, família, respeito, honradez, as crenças espirituais que mantemos, etc., fazem com que tenhamos valores diferentes uns dos outros. A forte ligação (biológica) entre a natureza humana e a ética humana justifica, de um modo imparcial, algumas práticas sociais, e alguns valores éticos, parciais. À semelhança do que escreveu Nietzsche acerca da verdade, os nossos valores morais são, do princípio ao fim, antropomórficos.
Ora, este facto enviesa a nossa imparcialidade ética pela raiz uma vez que o nosso comportamento moral é moldado pelo valor que achamos que devemos atribuir a cada um dos outros. Tendo em conta a origem socio-cultural dos valores morais é extremamente difícil, se não mesmo impossível, ser-se eticamente imparcial. A moral é por natureza parcial, como tal julgo que é até pertinente perguntar se é moral ser-se eticamente imparcial? Para o ilustrar pensemos num ser humano que orientasse a sua vida moral por estritos ideais de universalidade e imparcialidade, dando a mesma relevância ética a todos os seres humanos por igual. Ora, esse ser humano seria necessariamente um mau pai, um mau marido, um mau amigo, um mau cidadão, etc. Uma vida humana com sentido é necessariamente uma vida que nos possibilite ligações íntimas, profundas e completas com os seres humanos que nos são mais próximos. É natural que nos sintamos mais ligados aos nossos parentes e amigos que a um indivíduo que viva do outro lado do mundo. É mesmo natural que sintamos algum desapego para com a vida desse indivíduo. Com os nossos familiares, amigos e concidadãos, partilhamos muito mais que uma humanidade comum e, como tal, devemos muito mais a eles que a outro ser humano qualquer.

O paradoxo entre o sentimento cosmopolitista de uma humanidade partilhada, isto é, a noção de que vivemos num mundo global em que formamos uma só comunidade e todos temos certas obrigações morais universais, e o sentimento de que somos, e devemos ser, eticamente parciais, ou seja, que temos mais obrigações morais para com aqueles que nos são mais próximos, esse paradoxo, dizia, é dificilmente superável e a tentativa de o superar, ou contornar, é um desafio que necessariamente temos de nos colocar.

Resumindo, o que procurei mostrar nesta secção foi que o homem resiste à globalização, ou seja, dada a origem sentimentalista e evolucionista dos nossos valores morais, a nossa natureza humana opõe-se a uma ética global, universal e imparcial. O homem não evoluiu no sentido de viver num mundo global, mas numa aldeia, numa tribo, numa comunidade relativamente pequena, fazendo parte de uma família, de um clã ou de uma tribo. Como tal não aceita naturalmente a ideia de uma ética que transcenda os valores que melhor se adequam a essas realidades. Desde que começou a viver em sociedade o homem evoluiu para viver numa pequena comunidade de laços pessoais e foi no sentido de fortalecer esses laços sociais e sentimentais com os que lhe eram mais próximos que desenvolveu os seus valores morais, os seus códigos de conduta ética, apoiados num aparato cognitivo próprio que lhe possibilitam pensar e agir de acordo com essas necessidades. Porém, num curto espaço de tempo (comparado com a sua longa história evolutiva de mais de 100 mil anos) o homem viu-se forçado a viver no mundo inteiro e preocupar-se com o mundo inteiro. É, pois, natural que esse mesmo aparato cognitivo, esses mesmos códigos de conduta ética, enfim, esses valores morais, que tiveram origem e evoluíram para resolver problemas nos nossos ambientes e sociedades ancestrais (família, clã, tribo, nação) sejam desadequados a uma ética radicalmente diferente, uma ética imparcial, indiferente para com o que nos é mais ou menos próximo, uma ética demasiado racional e como tal demasiado inumana. No fundo a ética que idealmente se adequaria ao modelo de mundo para o qual caminhamos. Uma ética demasiado irrealista para um mundo demasiado real.

Em face desse caminho que se trilha à frente do homem, este parece coagido a encarar-se como um supra-homem, um homem universal, quando, claramente não tem capacidades para isso. Não se estará a exigir demasiado do homem actual? O esforço para uma ética universalista e imparcial não será um passo maior que aquele que as suas curtas pernas podem dar? Por outro lado, como exigir menos do que isso? É esse parece-me, o impasse a que chegamos e para o qual ainda não encontrei resposta.

A ideia fundamental que aqui quis passar aqui foi a de que a necessidade real de uma ética global, universal e imparcial é como um prego que tentamos apertar com a chave de fendas da nossa natureza humana.

Conclusão

Obrigados a superar o impasse
Apesar de ao nível ético haver uma divergência inconciliável causada, como vimos, pelo facto de nem todos valorizarmos as mesmas coisas, o ideal de cosmopolitismo ensina-nos algo que devemos ter sempre presente: a ideia que partilhamos todos a mesma humanidade apesar de não partilharmos os mesmos códigos morais. É deste mínimo ético comum, da ideia de homogeneidade da espécie humana, que devemos partir para tentar resolver alguns dos problemas prementes que se colocam às sociedades actuais. Estes problemas obrigam-nos a superar o impasse entre o ideal cosmopolitista e natureza humana.
Em ?O nosso futuro pós-humano? Francis Fukuyama alerta-nos para os perigos actuais de alguns progressos no campo das biotecnologias (engenharia genética, a neurofarmacologia e as ciências cognitivas) podere vir a alterar drasticamente aquilo que consideramos ser a nossa natureza humana (modelamento genético de fetos, indução de felicidades artificiais por meio de fármacos, prolongamento indefinido do tempo de vida em detrimento da qualidade de vida e do bem-estar social, etc.). O consequente abismo moral desse ?futuro pós-humano? obrigar-nos-á, em breve, a tomar posições éticas que fundamentem opções políticas de compromisso.

Outro problema grave que a ideia de cosmopolitismo pode ajudar a combater é o problema da fome nos países de terceiro mundo. A ideia que a miséria humana e a fome são um mal objectivo, não é passível de discussão ética. Estes problemas não são um problema ético, são um problema, ponto final. Partindo da ideia cosmopolitista de uma humanidade partilhada segundo a qual todos partilhamos das mesmas necessidades e preocupações, a obrigatoriedade do combate à miséria humana e à fome deve ser considerado um dado ético adquirido, objectivo e universal. A ideia de que a fome e a doença no terceiro mundo são uma epidemia que deve ser combatida é uma forma de pensamento cosmopolitista que ultrapassa quaisquer diferendos éticos que possam subsistir.

Aplicar no terreno (i.e. politicamente) estes ideais cosmopolitistas, implementando instituições que regulem o bom e o mau uso das tecnologias (Fukuyama, p.29), ou implementando políticas económicas como a proposta por Singer de os países ricos destinarem 1% do seu PIB ao combate à miséria e fome nos países do terceiro mundo (Singer, p. 261), é uma obrigação moral para as sociedades actuais.

A verdade é que vivemos todos num só mundo, somos uma humanidade inextrincavelmente ligada para o bem e para o mal e, como tal, é bom que nos entendamos se não eticamente, pelo menos humanamente. A ideia fundamental a reter aqui é que só temos, de facto, uma chave de fendas para trabalhar, mas o prego tem mesmo de ser apertado.

Tomás Magalhães Carneiro


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REDUCIONISMO: UMA PRIMEIRA ABORDAGEM (excertos)



Introdução

O reducionismo é a posição que defende que uma teoria de um determinado tipo pode ser explicada na sua totalidade por outra teoria mais básica.
Esta posição é a consequência lógica de uma determinada ontologia, o materialismo filosófico, ou seja, a doutrina segundo a qual tudo o que existe no universo é algo de material, ou seja, um agregado de partículas físicas elementares, sejam estas protões, electrões, ou quarks. Dessa forma o materialismo (e o reducionismo) é uma forma de monismo (defende a existência de uma única substância elementar) que nega a existência de coisas como almas, espíritos ou forças vitais.

Segundo esta posição ontológica materialista, tudo o que há (células, organismos, sistemas, etc.) são combinações desses materiais físicos básicos. Daí a crença em que as melhores explicações que podemos obter, as mais seguras, são aquelas que se reportam a essas entidades mais elementares.
A consequência lógica deste pensamento é a procura de uma ciência única, a física (a ciência que trata das coisas mais básicas), que explicaria tudo aquilo que existe (organismos, ecossistemas, a mente humana, sistemas sociais, etc.) dispensando todas as outras ciências que lhe são subsidiárias (química, biologia, psicologia, sociologia, etc.). Descobertas as leis fundamentais de tudo o que há, as leis dos quarks, ou de outras partículas mais elementares entretanto descobertas pela física, teríamos acesso, nas palavras de Stephen Hawking ao ?pensamento de Deus.? O cumular do pensamento reducionista seria a unificação da ciência, ou seja a sua redução a uma Grande Teoria Unificada da física. (Hawking, p.226)


Reducionismo ontológico e reducionismo metodológico

É comum fazer-se uma distinção entre reducionismo ontológico e reducionismo metodológico.
O reducionismo ontológico é uma crença mais fundamental acerca da estrutura do universo que defende que a melhor explicação para os fenómenos naturais deverá ser encontrada ao nível mais básico, o nível físico, enquanto que o reducionismo metodológico pode ser melhor entendido como uma estratégia que tem demonstrado bons resultados no que à investigação científica diz respeito. Seguindo esta estratégia o cientista procura explicações causais simples (leis que rejam as relações entre partículas elementares) para fenómenos biológicos complexos (a vida, a interacção entre organismos, etc.) Os sucessos da ciência mostram que a estratégia reducionista funciona: inovação tecnológica, engenharia genética, medicina, biotecnologia, etc.

O reducionismo ontológico partilha desta crença de que as explicações mais completas para os fenómenos biológicos devem ser encontradas ao nível das relações entre os elementos físico-químicos básicos, mas enquanto para o reducionista metodológico tal acontece pois essa é a melhor estratégia científica, isto é, a que até hoje comprovadamente deu mais resultados, para o reducionista

ontológico isso é verdade porque as únicas coisas que realmente existem, os fundamentos da realidade, são as partículas subatómicas.

Enquanto estratégia o reducionismo metodológico é uma tendência natural da ciência que procura compreender as coisas complexas através de uma análise das suas partes.
É seguindo esta estratégia que a posição reducionista em ciência cognitiva defende que as teorias psicológicas poderão ser explicadas em termos de teorias mais básicas como as teorias neurocientíficas, que desse modo revelarão que os estados psicológicos não serão mais que estados ou processos neurofisiológicos. Da mesma forma a posição reducionista defende que os termos de outras ciências de nível superior, como a biologia, serão melhor compreendidos quando forem explicados nos termos de outras teorias mais básicas, como a química e a física. Assim, por exemplo, a evolução de uma espécie será compreendida como a evolução de configurações físico-químicas essenciais à sobrevivência de determinados genes.
Se por um lado é relativamente fácil imaginar uma redução bem sucedida de uma teoria química a uma teoria física, assim como uma redução bem sucedida de uma teoria biológica a uma teoria química, já não é nada fácil perceber como é que seria a redução de uma teoria biológica a uma teoria física sem que nada da primeira se perdesse pelo caminho. Como explicar, por exemplo, os hábitos alimentares de um elefante nos termos usados pela física (relações entre átomos, electrões e quarks) sem que nada do que compreendemos através da explicação biológica se perca quando a traduzimos nestes termos? E se já é difícil, se não mesmo humanamente impossível, dar esse salto imaginemos o que seria procurar uma equação física que explicasse ao nível das relações entre átomos, electrões e quarks fenómenos psicológicos como as nossas crenças, os nossos desejos, as nossas intenções, as nossas sensações estéticas ou emocionais.

Ou seja um dos problemas colocados a uma tentativa de reduzir um fenómeno biológico, ou outro fenómeno de uma teoria superior (no sentido de mais afastada de uma teoria física básica) como a psicologia ou a sociologia aos termos de uma teoria física é, exactamente, que os tipos de explicação de uma e de outra ciência são diferentes pois ?a biologia lida com regularidades diferentes do tipo de regularidades da física e da química.? (Webster p.50).

Em seguida procurarei analisar algumas estratégias reducionistas em biologia e em ciência cognitiva, nomeadamente a tentativa de encontrar uma Teoria Unificada da Física e da Biologia, em Richard Dawkins, e a tentativa de encontrar uma Teoria Unificada Mente-Cérebro em Patrícia Churchland.
(...)

Argumentos filosóficos contra o reducionismo

O problema do reducionismo é um problema que deixou alguns filósofos como Donald Davison, Daniel Dennett e Jaewong Kim numa posição complicada. Por um lado não queriam deixar de ser fisicalistas (um tipo de materialismo), ou seja, queriam continuar a afirmar que não há nada no mundo que não seja uma entidade física ou uma relação entre entidades físicas, por outro não queriam, ou não achavam possível, reduzir fenómenos mentais a fenómenos físicos. Ou seja. Não queriam deixar de ser fisicalistas, mas também não queriam cair no redutivismo e, muito menos, no eliminativismo a que a posição reducionista radical parece invariavelmente conduzir.
Segundo a posição eliminativista em filosofia da mente os estados mentais normalmente invocados pela psicologia popular para falar da mente e das acções humanas (crenças, desejos, intenções, etc) não existem realmente. Para os eliminativistas estes estados são como os deuses das antigas religiões pagãs, ou como os espíritos vitais dos primórdios da ciência, i.s., são termos de uma teoria essencialmente errada que, como tal, são também eles falsos.

Em oposição a este fisicalismo radical (eliminativista), o fisicalismo das propriedades ou o fisicalismo não reducionista, afirma que algumas propriedades


de nível superior (a mente, por ex.) constituem uma classe autónoma e irredutível de propriedades.
Enquanto fisicalistas, os fisicalistas não reducionistas não caem numa posição eliminativista e reconhecem que as propriedades psicológicas apesar de não serem redutíveis a propriedades físicas dependem de propriedades físicas que lhes servem de substrato. Ou seja, os fisicalistas que não aceitam a eliminação do mental aceitam a tese da superveniência do mental sobre o físico, a tese de que a natureza mental de um indivíduo é totalmente determinada pela sua natureza física.

i)Superveniência

Uma forma de superar o reducionismo sem abandonar uma ontologia fisicalista é a teoria que nos diz que a mente é superveniente em relação ao corpo. Esta tese mantém que o mundo é fundamentalmente composto por entidades físicas, mas no entanto apresenta-se-nos hierarquicamente dividido em várias camadas (multilayered) ou categorias de entidades. (Kim, p.221)

As propriedades mentais emergem ao nível dos organismos que são, no entanto, compostos por entidades físicas de níveis inferiores, ou ontologicamente mais básicos. Nesse caso como é que as entidades de níveis superiores (estados mentais) se relacionam com as entidades de níveis inferiores das quais emergem (estados cerebrais)?

Actualmente a posição consensual em filosofia da mente parece ser a de que as propriedades de nível superior são dependentes das propriedades de nível inferior. E é aqui que entra o conceito de superveniência.
Kim dá um exemplo de uma relação de superveniência falando de uma obra de arte, uma escultura, em que a beleza é o resultado do trabalho físico sobre um pedaço de mármore. A beleza é, diz-nos Kim, superveniente em relação ao bloco de mármore trabalhado. Ou seja não há nada mais que a pedra trabalhada a determinar a beleza da obra de arte, como tal as propriedades físicas do objecto determinam totalmente as suas propriedades estéticas. Ou seja, as propriedades estéticas são supervenientes em relação às propriedades físicas. O mesmo se passa analogamente com a relação entre o mental e o corporal.

Como se pode ver, o conceito de superveniência permite-nos falar de dependência e determinação do físico sobre o mental, sem que nos vejamos obrigados a falar de redução, que é exactamente o que pretendem aqueles fisicalistas que querem rejeitar a posição reducionista mas que não querem deixar de falar de uma dependência do mental em relação ao físico.
O conceito de superveniência permite-nos falar de uma determinação física de um fenómeno mental, mas permite-nos não ter de explicar esse fenómeno em termos físicos, ou seja reduzir esse fenómeno mental a um fenómeno físico ? um fenómeno mental é irredutível ao fenómeno físico que o origina. Este conceito parece servir tanto ao fisicalismo como ao anti-reducionismo.


ii) Monismo Anómalo

Para alguns filósofos como Paul Ricouer não é certo que o eventual conhecimento completo do que se passa no nosso cérebro melhorará o conhecimento que temos de nós mesmo. (Ricouer, 2001) É neste sentido que se coloca a objecção de Donald Davidson a esta procura por parte das ciências cognitivas de uma Teoria Unificada da Mente-Cérebro. Esta teoria, diz-nos Davidson, é algo que não faz qualquer sentido. Nos seus artigos ?Mental Events? (1979) e ?Psychology as Philosophy? (1974), Davidson argumenta contra a possibilidade de uma redução teórica dessa natureza devido ao abismo conceptual existente entre as explicações de nível psicológico (são crenças, desejos e intenções que causam acções físicas como o facto de eu erguer intencionalmente a mão e beber um copo de água) e as explicações de nível físico (que falam em termos do funcionamento de células, reacções químicas, sinapses neuronais, etc.) sobre as quais as ciências físicas trabalham. Muito grosseiramente a tese defendida por Donald Davidson nestes dois artigos é que as teorias psicológicas não podem ser reduzidas a teorias físicas.

Uma teoria que reduzisse a mente ao cérebro identificaria um qualquer evento mental com um evento mental correspondente. Esta é a chamada Teoria da Identificação Mente-Cérebro que tem a seguinte forma: uma sensação é um processo cerebral.

Os benefícios desta identificação do mental com o físico seriam, dizem os reducionistas, duplos. Obteríamos uma maior economia ontológica, uma vez que ao dispensarmos as mentes e os eventos mentais estaríamos a simplificar a nossa ontologia. Conseguiríamos também uma unificação de teorias, ou seja, ao identificarmos as mentes com propriedades neuronais complexas podemos integrar, ou seja reduzir, a psicologia a outras ciências mais básicas como a biologia, a química ou a física.

No entanto em filosofia da mente colocaram-se alguns problemas a esta posição reducionista:
O argumento do anomalismo psico-físico diz-nos que não existem leis que liguem os fenómenos físicos aos fenómenos mentais, como tal não é possível reduzir uns aos outros.
Outro argumento contra a identificação do mental com o físico é o argumento funcionalista da realizabilidade múltipla (ver 1,c,ii), que nos diz que se um evento mental pode ser realizado por uma multiplicidade de propriedades físicas em ?diversas espécies e estruturas?, não pode ser identificado com uma única propriedade física.
Tais considerações levaram muitos filósofos a defender um tipo de fisicalismo não reducionista, segundo o qual apesar de todos os indivíduos serem constituídos apenas por elementos físicos (monismo), algumas propriedades destes indivíduos, nomeadamente as suas propriedades psicológicas, não são redutíveis a propriedades físicas.

Davidson defendeu uma Teoria da Identificação que nega a existência de leis que liguem o mental ao físico, ou que identifiquem um com o outro, e para isso revelou-nos aquilo que diz ser a característica distintiva dos eventos mentais: o facto de possuírem intencionalidade. Algo de que uma Teoria da Identidade Mente-Cérebro


não dá conta, uma vez que processos cerebrais (ao contrário dos eventos mentais) não têm intencionalidade.
Esta é a base da tese do monismo anómalo de Donald Davidson. Segundo esta tese (defendida também por Daniel Dennett e Thomas Nagel) todos os acontecimentos são físicos e tudo o que existe são eventos físicos. É como tal uma posição fisicalista e monista (pois não se compromete com outras entidades não físicas). Mas ao mesmo tempo é anómala pois rejeita uma tese fundamental no fisicalismo tradicional que nos diz que os eventos mentais só podem ter explicações físicas: ?Apesar de a minha posição negar a existência de leis psicofísicas, é consistente com o ponto de vista segundo o qual as características mentais são, de algum modo, dependentes ou supervenientes, de características físicas.? (Davidson 2001, p.214)

Davidson rejeita a possibilidade de leis psicofísicas, uma vez que as leis são linguísticas e, como tal, podem ser descritas de uma ou de outra maneira. Ou seja, os eventos são mentais apenas enquanto são descritos, ou seja enquanto são linguísticos. Eventos mentais são atitudes proposicionais como crenças, desejos, intenções, apreciações estéticas, etc., que dependem, para tal, da sua inserção num contexto linguístico, numa rede de outras crenças, desejos e intenções. Não podemos atribuir inteligibilidade às atitudes proposicionais de um agente excepto dentro de uma rede de crenças, desejos, intenções e decisões. Os eventos cerebrais são processos físicos sintácticos, i.e., sem o conteúdo semântico que possuem os eventos mentais. Como tal, para aceitarmos a existência de leis psicofísicas que ligariam o mental ao físico e nos possibilitariam uma unificação da psicologia com a neurociência teríamos de deixar de falar do mental nos termos usados pelas ciências físicas ? algo que essas ciências não conseguem fazer. Os predicados físicos e mentais simplesmente não foram feitos uns para os outros.
Ou como escreve Davidson, ?em sentido algum podemos reduzir a psicologia às ciências físicas.?(Davidson 2001, p.259 ).

Pensemos por exemplo na minha crença de que ?a água está fria?. Ora, esta crença não pode ser explicada nos termos de uma teoria física (algo como H2O + a temperatura de 10º centígrados), pois o termo ?fria? é relativo ao conjunto de crenças, atitudes, objectivos e necessidades do sujeito, ou seja, depende de uma série de factores que o levam a acreditar que a água está fria. Se o sujeito fosse um pinguim da Antártida acreditaria muito provavelmente que a água estaria morna. Devido à sua inserção numa rede de atitudes proposicionais um enunciado psicológico não pode ser reduzido a um enunciado nos termos de uma teoria física.

É uma característica da realidade física que a mudança física pode ser explicada por leis que demonstram a causalidade física. E é uma característica do mental que a atribuição de fenómenos mentais é devida ao background de razões, crenças e intenções do indivíduo. Assim, para a nossa concepção de homem enquanto animal racional é essencial o abismo nomológico (nomos = lei) entre o mental e o físico. Uma teoria da mente humana deve ser uma teoria envolvente e não uma teoria unificada.

Resumindo, a tese central do monismo anómalo de Davidson diz-nos que os eventos mentais são nomologicamente irredutíveis a eventos físicos, e que não há ligação possível entre as leis psicológicas e as leis físicas.

Tomás Magalhães Carneiro


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