Via da Verdade |
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sábado, março 15, 2003
"O Segredo de Joe Gould" de Joseph Mitchell Joe Gould é um vagabundo de Nova York, o último dos boémios, que tem um único objectivo na vida: viver o suficiente para terminar a sua grande obra, “A História Oral do nosso tempo”. O seu relato, disperso por centenas de cadernos, dispersos por inúmeros esconderijos, tabernas, casas de amigos, etc., cobriria a verdadeira história contemporânea de Nova York. A história das pessoas comuns, dos marginais, das prostitutas, dos boémios, dos artistas do submundo intelectual, vagabundos com quem Gould se havia alguma vez cruzado e conversado. A História Oral, consistia numa amálgama anárquica (tal como a vida) de histórias como a da velha búlgara que tinha sido gerente de um bordel e traficante de droga a mando do marido, antes de chegar a cozinheira num hotel barato; ou aquela de Side-Bet Benny Atlschuler, dono de um restaurante, apostador em corridas de cavalos, que morreu de tétano depois de ser ter espetado com um picador de gelo enferrujado; ou ainda a história que ouviu de um marinheiro acerca de leprosos bêbados que dançavam e cantavam numa praia das Caraíbas; ou o seu relato pessoal do tempo que passou em reservas de índios a medir-lhes o crânio, com o intuito de estudar o apuramento das raças; continha também divagações sobre as pulgas dos albergues de sem-abrigo, o fecho éclair, o efeito castrador que a máquina de escrever tem no escritor e a importância dos tomates no descarrilamento de comboios no sul dos estados unidos; contava ainda os mexericos sociais, aventuras sexuais e debates intelectuais dos habitantes da Village. A História Oral seria um monumento literário e histórico, um mapa à escala real, da Nova York de meados do sec. XX. Não admira que poetas reconhecidos como Ezra Pound e E.E.Cummings se tenham interessado por este projecto. Joseph Mitchell é o jornalista que celebrizou Gould num artigo para a rubrica “Perfis” da revista The New Yorker. Esse artigo é reproduzido no primeiro capítulo deste livro, “O Professor Gaivota”. A sua escrita é bem calibrada, jornalística mas não sensaborona, criativa e elegante. Faz-nos andar com Joe Gould na ponta dos dedos da primeira à última página, ao ritmo frenético da sua existência: “Vivo mais num ano do que o comum dos mortais em dez.” Rimo-nos com ele, irritamo-nos, desiludimo-nos, amamo-lo e rejeitamo-lo, ao sabor da pena de Mitchell. Devorei-o numa tarde e sei que um dia voltarei a pegar nele, de tal forma apaixonou-me a sua leitura. Após a morte de Joe Gould, em 1957, Joseph Mitchell decidiu revelar-nos o seu segredo. Para o descobrirem terão que ler o segundo capítulo, aquele que dá o nome ao livro. TomaZ (0) comentários “O ano da morte de Ricardo Reis” de José Saramago Comecei a ler “O ano da morte de Ricardo Reis” com o interesse de aprofundar o conhecimento deste heterónimo do Pessoa. De nada valeu. Saramago não procurou aprofundar a personagem (como também não o fez com qualquer outra personagem do livro) o seu comportamento é neutro, distante e difuso. A personagem Ricardo Reis, que conhecemos, vive mais das citações de poemas seus que da acção da personagem em si mesma. No fim da leitura deste livro, fiquei com a impressão que este não tratava de Ricardo Reis, ou pelo menos trata pouco do Ricardo Reis, mas antes do ano da sua morte – como uma análise primária do título nos diz. “O Ano da morte de...” Uma leitura, também primária, da obra, pouco mais revela que uma data de colagens de jornais da época, citações de poemas de Reis e Pessoa, um óbvio caminhar na sombra destas duas personagens, intercalados por momentos pretensamente profundos, normalmente apresentados sobre a forma de potenciais diálogos, em hipotéticas situações. Filosofia de pacotilha a que já nos habituou Saramago. O “Ano da Morte de Ricardo Reis” podia ser um conto interessante (entre as 50 e 100 páginas), mas as exigências do mercado (“Precisamos de um livro no valor de 3 contos = mais de 300 páginas”) transformaram-no num livro soturno, vago e mal elaborado. Não consigo ganhar afecto às personagens do Saramago, todas elas parecem ter sido metidas lá por acaso, exceptuando, neste livro, Lidia (e Fernando Pessoa) a quem Saramago deu o papel do Caeiro feminino, com a última palavra sobre o que “as coisas são.” Também não gosto da sua técnica. O texto denso, compacto revela, a meu ver, a sua incompetência para a comunicação em prosa (a mais difícil das técnicas de escrita), e as suas introspecções (ia dizer pseudo-proustianas, mas como não encontrei a mais vaga semelhança literária entre Saramago e Proust, fiquei-me pela hesitação) em forma de extensos diálogos prováveis, cansam, são a maior parte das vezes inoportunas, mostram que o autor não teve tino na pena, induzem a confusão de planos narrativos e só servem para a dispersão geral da obra (o exemplo máximo desta dispersão, em Saramago, encontrei nos “Evangelhos Segundo Jesus Cristo” – Jesus Cristo!!). Mas por outro lado, talvez esta dispersão tenha sido propositada, de modo a apagar o Ricardo Reis, não mexer muito nele, e colocá-lo apenas como testemunha acrítica dos acontecimentos do ano da sua morte: Guerra Civil em Espanha, servilismo do Estado Novo ao fascismo e ao nazismo, etc. Quanto à história em si:Porque é que Saramago fez sobreviver Ricardo Reis ao Pessoa? Os diálogos entre os dois (Fernando Pessoa, depois de morto, continua a visitar Ricardo Reis) aparece a ricardo Reis), são na sua grande parte inconsequentes, porém, Pessoa faz notar algumas vezes que a vivência do Reis médico, indivíduo, está em contradição com o que diz o Reis poeta. A meu ver, Saramago diz-nos que ninguém poderia ser tão espartano, tão racional, tão estóico e conformado como o Reis das Odes. Os nove meses que Saramago permitiu que Reis sobrevivesse a Pessoa permitiram aquele encontrar uma Lidia carnal, genuína, que não a etérea e distante musa dos seus poemas. Saramago trouxe de volta Ricardo Reis do seu exílio no Brasil, que era ao mesmo tempo afastamento da pátria e afastamento dos homens – “Ver a vida à distância.”. Proporcionou-lhe em Lisboa uma existência concreta, verdadeira, imediata, em contacto com o sexo, o amor e a morte. Não haja dúvida que dos três grandes heterónimos de Pessoa, Ricardo Reis era o que mais necessitava deste choque com a realidade. (0) comentários "Se isto é um homem" de Primo Levi: -Pode alguém ter sido Homem em Auschwitz? Podemos dizer que é esta a interrogação fundamental do impressionante “Se é isto um homem”, de Primo Levi. Figura essencial da literatura italiana do pós-guerra, ao lado de outros como Italo Calvino ou Cesare Pavese, Levi é um judeu que sobreviveu “por sorte” aos campos de extermínio nazis, e que dedicou o resto da sua vida a tentar responder à “pergunta essencial” de Auschwitz: “O que é um homem?” Mais do que uma descrição dos horrores do quotidiano num campo de extermínio, “Se isto é um homem”, é um impressionante estudo daquilo em que os homens podem transformar outros homens, e da luta constante destes últimos para não deixarem de o ser: “...exactamente porque o Lager (campo de concentração) é uma grande máquina de nos reduzir a animais, nós não devemos tornar-nos animais.” Para Levi, em Auschwitz, tal não foi possível. Aqui, (como em outros campos de extermínio) a grande máquina ideológica alemã, deu estrutura e corpo a todas aquelas crenças e dogmas, que todos os homens têm em relação a outros homens, mas geralmente de forma escondida, vaga e difusa, e organizou-as de forma a levá-las até às suas últimas consequências. O Nazismo é, por isso mesmo, a soma de todas aquelas características, presentes em todos nós, que juntas formam o Mal, tal como o podemos conceber. Auschwitz, foi o resultado dessa soma. Levi analisou esse resultado e questionou-se sobre: “o que resta de um homem quando todas as condições de existência humana lhe são subtraídas?” Ao ler “Se isto é um homem” chegamos à conclusão que não resta nada. Em Auschwitz, Levi era Häftlengue, a posição mais baixa na hierarquia do campo, composta por Kapos, criminosos, políticos, especialistas... Curiosamente, os SS´s raramente são referidos. A sua presença é constante, mas distante. Encimam as torres de vigia, assistem às execuções e participan nas selecções dos prisioneiros que vão para as câmaras de gás, mas a vida no campo é gerida totalmente entre os prisioneiros, e é a luta diária para subir na hierarquia do campo que vemos aqui relatada. O Lager pode ser visto como um laboratório sinistro da vida real, e os prisioneiros pequenas cobaias insignificantes, sob o jugo nazi. O Homem, como indivíduo, morreu em Aushwitz e, em seu lugar, nasceu uma massa informe, cinzenta e macerada, de milhares de imundos sacos vazios que se arrastavam : “Tem 30 anos mas, como todos nós, poderia dar-se-lhe entre 17 e 50.” Apesar de morto, o Häftlengue 174 517, conseguia por vezes vislumbrar algo de uma humanidade que persistia para lá do arame farpado. Graças à bondade desinteressada de Lorenzo, um trabalhador civil de fora do campo que, arriscando a sua própria vida, fez com que Levi enviasse uma carta para casa, trazendo-lhe depois a resposta: “aconteceu-me não esquecer que também eu era um homem.” Durante o dia, o Häftlengue 174 517, não sofria, não amava, não esperava, não sentia, não reagia, não vivia. Nos raríssimos intervalos desta “existência negativa”, (segundo Levi, os homens livres não conseguem definir, e muito menos compreender, a “não existência” de um Häftlengue) quando sentia “a dor de recordar o antigo e feroz sofrimento de me sentir homem, que me assalta como um cão no instante em que a consciência sai da escuridão”, Levi o Homem, renascia penosamente, agarrava o caderno e o lápis (roubados da enfermaria) e escrevia “o que não seria capaz de dizer a ninguém”. Há uma segunda pergunta que poderia ser feita a Primo Levi: -Poderá um homem sobreviver ao facto de ter sobrevivido a Auschwitz? A esta pergunta Levi respondeu igualmente que não. Primo Levi suicidou-se no dia 11 de Abril de 1987, com o número 174 517 ainda tatuado no pulso. (0) comentários |