Via da Verdade

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terça-feira, novembro 29, 2005
 
Já nos vossos monitores

O número 11 da revista Intelectu dirigida por Sara Bizarro.
Este número é quase totalmente composto por artigos de investigadores do Mind Language and Action Group (Mlag) - do qual faz parte este vosso autor - no âmbito do projecto de investigação Rationality, Belief, Desire II - from cognitive science to philosophy.

Como escrevem as editoras deste número (Sofia Miguens e Sara Bizarro) no editorial, o denominador comum [destes artigos] é a racionalidade, [sendo] o objectivo central do Projecto RBD2 [o de] compreender a racionalidade de agentes, nomeadamente dos agentes humanos.

Os artigos são os seguintes:

O que tem a filosofia a dizer à psicologia - uma entrevista de Sofia Miguens ao filósofo americano Charles Travis

Somos ou não inevitavelmente racionais - um polémico artigo do filósofo brasileiro Carlos E. Mauro. Mauro diz que sim, e que não faz sentido falar de irracionalidade em Filosofia da Acção.

J.Fodor e os problemas da Filosofia da Mente - sendo Fodor um dos autores centrais do projecto RDB2 Sofia Miguens aborda aqui os problemas levantados por este filósofo à Filosofia da Mente assim como as soluções por ele apresentadas. Apresenta ainda algumas das críticas que podem ser feitas a Fodor e aos seu projecto de Filosofia da Mente.

O problema do auto-conhecimento - neste artigo Sofia Miguens procura
formular os princípios de um modelo para a investigação do auto-conhecimento em termos de entendimento linguístico que ultrapasse as limitações dos modelos cartesiano (observacional) e wittgensteiniano (expressivo).

Para acabar de vez com o cognitivismo -
neste artigo procuro mostrar que o cognitivismo em teoria das emoções tem os dias contados.

Teorias da Mentalidade. Uma apresentação filosófica - onde Clara Morando analisa as propostas apresentadas por S. Stich e S. Nichols na sua obra Mindreading acerca das nossas capacidades de ler as mentes dos outros e de assim
atribuir estados mentais (crenças, desejos, pensamentos, emoções) a outros agentes e a nós próprios.

Evolução, Cultura e a Irracionalidade das Emoções - onde é apresentada uma descrição consequencialista da racionalidade humana que procura corrigir um pouco a mão às interpretações da relação entre a racionalidade e as emoções que surgiram depois dos importantes trabalhos de António Damásio em neurociência.





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domingo, outubro 16, 2005
 

Blackburn, Hume e Kant sobre os fundamentos do agir moral + Apêndice sobre a possibilidade de sermos eticamente imparciais.

Nos capítulos 7 e 8 de Rulling Passions, Simon Blackburn procede a uma investigação da nossa natureza enquanto seres deliberadores, contrastando os modelos sentimentalistas (de inspiração humeana) e racionalistas (de inspiração kanteana) de tomadas de decisão, argumentando em favor dos modelos sentimentalistas.

De acordo com David Hume (e também Adam Smith), os nossos sentimentos morais são uma forma de coordenarmos as nossas acções com o resto da sociedade. Essa coordenação é conseguida através de diversas pressões sociais, que nos levam a comportarmo-nos e a educarmos os nossos filhos de um modo cultural e socialmente [logo moralmente] correcto. Um dos grandes objectivos da educação é, segundo Hume, fazer como que o coração se rebele contra aquilo que é considerado uma iniquidade.

Ou seja, para Hume o fundamento do nosso agir moral não é Deus, ou a Razão, mas a nossa capacidade e vontade de tomarmos o ponto de vista comum.
De facto a procura, por parte de muitos filósofos e moralistas, de um fundamento universal para a moral não foi mais que uma forma de evitar o relativismo ético a que posições como a de Hume e Smith conduzem.

É por de mais sabido que Kant procurou esse fundamento último do agir moral na Razão. Para ele a voz da moral confunde-se com a voz da razão, ou seja, a apreensão racional da lei moral tinha carácter absoluto e obrigatório. Por outras palavras as normas da razão subjazem às normas da ética. Este tipo de moral (deontológica) proposta por Kant está associada a uma metafísica do agente racional em particular, metafísica essa que, como veremos mais à frente, Blackburn rejeita.
Para fundamentar o agir moral na razão, Kant afirma que a acção moral deve seguir uma máxima (uma razão da acção) que se possa tornar uma lei universal. Esta é apenas uma das formulações possíveis do Imperativo Categórico de Kant, a base da ética deontológica de Kant.

O problema deste Imperativo, ou do agir segundo uma máxima ou regra, é que não há nenhuma acção, máxima ou regra que se possa tornar universal no campo do agir moral. Por exemplo, a proibição de mentir, pode por vezes ser a acção moral correcta, mas esta proibição nunca pode ser absoluta, como se verifica quando alguém mente para não revelar ao louco com o machado nas mãos onde escondeu os seus filhos.

Ou seja, pelo facto de uma pessoa ter determinados princípios e considerar certos deveres como moralmente correctos (não mentir, por exemplo), não quer dizer que essa pessoa tenha de deixar de pensar sempre que embate num desses princípios e deveres. Vários princípios e deveres entram em confronto entre si. Por vezes escolhemos seguir uns, por vezes outros.

Apêndice- Será possível ser eticamente imparcial.

Se formos kanteanos e considerarmos que o nosso agir ético é fundado na Razão, nesse caso deveria ser possível ser-se eticamente imparcial, uma vez que o agir moral seria acessível a qualquer ser humano detentor de uma capacidade de raciocínio normal. No entanto Blackburn afirma (seguindo a posição humeana) que aquilo que consideramos moralmente correcto está intimamente ligado ao meio socio-cultural que nos envolve; as relações de amizade, família, respeito e honradez que mantemos uns com os outros faz com que tenhamos valores diferentes uns dos outros. Ora, esse facto afecta a nossa imparcialidade ética, uma vez que o nosso comportamento moral é moldado pelo valor que achamos que devemos atribuir a cada um dos outros. Tendo em conta a origem socio-cultural dos valores morais é extremamente difícil, se não mesmo impossível, ser eticamente imparcial. A moral é por natureza parcial, como tal julgo que é mesmo pertinente perguntar se é moral ser-se eticamente imparcial?

Hume e Kant acreditam ambos na existência de pressões sociais para agirmos moralmente, apenas discordam na origem dessa pressão: os sentimentos para Hume, a razão para Kant [1]. Para Hume é a nossa natureza sentimental que nos empurra para a prossecução do bem comum. Na verdade as nossas emoções (ou sentimentos) tanto podem determinar um comportamento ético como não ético. É necessária uma ordem social específica para estabelecer uma harmonia entre a rectidão e o sucesso. A moralidade é, de facto, uma conquista social.

[nota 1 - Na verdade, não só o pensar moral, mas todos os materiais do pensamento em geral são derivados da sensibilidade ? Toda a ideia é copiada de alguma impressão ou sentimento anterior (Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, pg 78; ed. 70)].


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sexta-feira, outubro 14, 2005
 
Stich e o Eliminativismo quanto às Crenças e Desejos

O eliminativismo defende que estados mentais como crenças e desejos não existem. São, segundo esta posição, termos de uma teoria comum fundamentalmente errada: a psicologia popular.
Desta premissa os eliminativistas concluem que os estados mentais não têm lugar na ontologia de uma ciência moderna.

Para Stephen Stich, esta conclusão não se segue das premissas apresentadas.
Segundo Stich existem duas teorias da referência que procuram dar conta da relação entre os termos da teoria popular (crenças, desejos, intenções, etc.) e os dados da ciência:

- semântica popular (a referência é indeterminada)
- proto-ciência (é a ciência que deve determinar a relação mundo-palavra)

A primeira posição de Stich era de que nenhuma destas teorias resolvia o problema do eliminativismo que, ou era insolúvel, ou não tinha qualquer importância.
Foi John Searle quem convenceu Stich de que este impasse se aplicaria de igual modo tanto aos termos da psicologia popular, como aos da física, da química, etc.
Esta crítica de Searle levou Stich à conclusão de que as questões semânticas acerca da referência não servem para resolver problemas ontológicos como os levantados pelo eliminativismo.

Na opinião de Stich, chegamos a conclusões ontológicas sobre algo através de processos de negociação social, política pessoal (como a influência de certas personalidades, factores sociais, etc.)
Estas posições de Stich aproximam-se das de Quine e Rorty (A Filosofia e o Espelho da Natureza).

Bibliografia

Deconstructing the Mind - Stephen Stich


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O cognitivismo de Jon Elster , emoções e racionalidade

Falar de fenómenos tão diferentes como são as diferentes reacções emocionais, agrupando-as num conceito unificador como é o de Emoção é um modo conveniente de organizar o nosso discurso. No entanto, o uso desse rótulo (comportamento emocional) não nos deve levar a pensar que todo o comportamento emocional é levado a cabo por somente um sistema do cérebro, nem nos deve ocultar que por detrás desse rótulo está uma miríade de eventos físicos e mentais. Ou seja, para determinados propósitos pode ser útil falar de emoções como um todo, para outros propósitos as diferentes emoções devem ser tratadas como fenómenos distintos.

Uma disputa comum em filosofia das emoções é a de saber se uma emoção tem necessariamente um antecedente cognitivo e, além disso, se é ou não um estado intencional. De um dos lados da disputa encontram-se os cognitivistas para quem um estado que não tenha um antecedente cognitivo nem seja um estado intencional, não se qualifica como uma emoção. No seu livro, The Alchemies of the Mind, Jon Elster não nega que algumas emoções, como o medo e a raiva, não têm antecedentes cognitivos. Ou seja, não nega que uma cognição não é necessariamente uma condição de todas as emoções, e neste sentido Elster podia ser classificado como um não cognitivista. No entanto, afirma que as emoções que verdadeiramente importam para uma abordagem filosófica das emoções são as emoções comuns, aquelas com que nos deparamos no quotidiano e, para essas, é de facto necessário um antecedente cognitivo. Pelo que Elster é, na verdade, um cognitivista quanto às emoções.

Neste seu livro Elster diz-nos que se preocupa sobretudo com as consequências (filosóficas) das emoções e não tanto com a sua origem (neuro-físico-químico-socio-antropo-cultural). Como tal, passa por cima do problema de saber o que é que se entende em concreto por uma emoção (para Elster ainda não há unanimidade quanto aquilo que é uma emoção) e parte da definição comum de emoção. Segundo esta definição comum, uma emoção não é despoletada por um evento ou estado de coisas, mas antes por uma crença num evento ou estado de coisas. Isto é, uma crença é mediadora de um evento e de uma emoção.
Neste sentido poderemos falar de emoções racionais e irracionais. Ou seja, se uma crença é irracional se não for bem fundamentada, uma emoção mediada por uma crença irracional é, também ela, irracional.

No que diz respeito à relação entre as emoções e a racionalidade, Elster identifica três grandes questões:

1) Qual o impacto das emoções na racionalidade das tomadas de decisão e na formação das crenças? ;
2) Até que ponto as emoções são racionais? ;
3) Podemos influenciar racionalmente as nossas emoções e as dos outros?

Por agora interessa-nos apenas a primeira questão.


1) Quanto ao impacto das emoções na racionalidade humana, o ponto de vista actual é contrário à tradição que opunha emoções e razão. Actualmente as emoções são tidas como essenciais para o processo racional.
Para saber de que modo as emoções possibilitam e adulteram os processos de tomada de decisão racional, em primeiro lugar é preciso clarificar o que é que se entende por uma acção racional e, por outro lado, como e quando é que uma acção não é racional.

Elster entende por acção racional aquela que:

a) dadas as crenças e os desejos do agente, a acção escolhida é a melhor;
b) dada a informação disponível para o agente, as suas crenças são as melhores crenças;
c) dados os desejos do agente e as suas crenças quanto aos custos-benefícios da informação que detém os recursos utilizados para a obtenção de informação são os melhores.

Consequentemente, uma acção não é racional por indeterminação (c, não se aplica) ou por irracionalidade (a e b não se aplicam), e as emoções podem desempenhar um papel subversivo na racionalidade da acção, tanto na formação de crenças como na aquisição de informação.
As emoções podem afectar a escolha racional de diversas formas: por enviesamento de probabilidades e credibilidade; aumentando as nossas crenças em acontecimentos improváveis; causando comportamentos irracionais (raiva, medos, fobias, etc.); omitindo as consequências das nossas acções; promovendo um desinteresse geral na procura de mais informação relevante; etc.

Elster partilha as opiniões de Ronald de Sousa e António Damásio que defendem que uma pessoa sem o seu aparato emocional a funcionar devidamente não chegaria sequer a tomar uma decisão racional ou irracional. Para estes dois autores as emoções estão causalmente envolvidas no processo de tomada de decisão racional, ajudando-nos a escolher entre duas opções com o mesmo valor, ajudando-nos a superar a nossa endémica falta de razões para agir optimamente informadas, poupam-nos o tempo que gastaríamos desnecessariamente a procurar essas informações. Resumindo, e citando de Sousa, o papel das emoções é suprir a insuficiência das razões.

No prefácio a este livro Elster anunciou que o seu objectivo é o de procurar compreender o papel desempenhado pelas emoções na vida mental e na geração do comportamento. Porém, se por um lado concorda com Damásio quando este diz que uma redução das emoções constitui uma importante fonte de comportamento irracional, para Jon Elster o que explica o facto de nós tomarmos uma decisão em vez de outra não é o facto de sentirmos uma emoção (enquanto estado físico) positiva ou negativa. A explicação do comportamento está ao nível das razões e não das causas. Ou seja, ao nível de atitudes proposicionais como as crenças e os desejos (pg 297). Julgo que neste ponto podemos ver a mesma defesa de uma irredutibilidade do psicológico ao físico que encontramos em Donald Davidson (no sentido em que os nossos conceitos físicos não têm profundidade suficiente para explicar os nossos conceitos psicológicos.

Nota 1: No seu artigo Psychology of Philosophy Davidson defende que conceitos como referência, significação e condições de verdade são conceitos intencionais e semânticos que, como tal, não tên lugar numa teoria cìêntifica. Os eventos mentais pertencem ao mundi físico, no entanto nós é que não conseguimos compreender como. Para Davidson não temos acesso aos cont~eúdos mentais a não ser através de um processo de interpretação (as razões de que fala Elster). Não podemos atribuir pensamentos a nós mesmos fora de uma comunidade de intérpretes e locutores. Só o podemos fazer quando estamos em posição de interpretar alguém.

Nota 2: Também para Quine uma descrição psicológica passa por cima da complexidade neuronal referindo-se a um sintoma (um efeito) em vez de a um mecanismo neuronal (uma causa).

Bibliografia

The Alchemies of the Mind - Jon Elster
Essays on Actions and Events - Donald Davidson
Introdução à Filosofia do Espírito - Pascal Engel
A Companion to the Philosophy of Mind - Samuel Guttenplan


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Armas, Germes e Aço ? o destino das sociedades humanas
Jared Diamond; ed. Relógio d´Água

O que fez Jared Diamond escrever este livro foi uma pertinente pergunta feita por um seu amigo neoguineense: Por que razão é que vocês, brancos, criaram tanta carga e a trouxeram para a Nova Guiné e nós, negros, tínhamos tão pouca carga nossa? Por outras palavras Diamond quer perceber as razões, ou as causas, da actual distribuição da riqueza e poder pelos diversos povos e continentes e dessa forma compreender a origem da desigualdade entre os povos e as raças.

Diamond começa por descartar algumas das explicações mais comuns, como a explicação pelas diferenças biológicas entre povos. Segundo este ponto de vista racista, uns povos seriam mais inteligentes do que outros, pelo que é natural que os mais aptos (implicitamente os mais inteligentes) dominem os menos aptos (os menos inteligentes, portanto). Diamond, que viveu muitos anos entre os povos geralmente chamados de primitivos, diz que pelo contrário, a inteligência e a desenvoltura mental é apanágio destes primitivos. De facto, basta pensar na quantidade de estímulos a que uma criança primitiva é sujeita, na quantidade de interacções que estas têm com outras crianças, adultos, animais e a natureza em seu redor, e pensar no filho obeso da nossa prima, pálido de olhar vítreo e polegares calejados de carregar nos botões da PlayStation e no comando da televisão, para compreender quem é o primitivo.

Então, pode o leitor perguntar, por que motivo é que somos nós ocidentais, bando de balofos intelectuais, quem domina o mundo e não os neoguineenses, os pigmeus africanos ou os aborígenes australianos, reconhecidos ginastas mentais?

Diamond avança com dois graus de explicação. A primeira (de 1º grau) diz-nos que a sociedade ocidental (euroasiática) é quem domina o mundo devido a ter tido a seu favor factores como as armas de fogo, as doenças infecciosas e os utensílios de aço. Esta explicação é no entanto insuficiente pois deixa por esclarecer os motivos por que foram os euroasiáticos (e não outros povos quaisquer, como os Africanos ou os nativos Americanos) a desenvolver esses factores de dominação. A explicação (de 2º grau) avançada por Diamond é que as raízes de desigualdade no mundo moderno mergulham profundamente na pré-história, em diferenças ambientais, geológicas e acasos históricos, tais como a orientação dos eixos dos diferentes continentes (Leste-Oeste na eurásia e Norte-Sul nas Américas e África) que permitiu uma mais rápida e homogénea dispersão de culturas, invenções e ideias ao longo de uma mesma latitude (na verdade as invenções e as ideias foram atrás das culturas que se propagaram a partir do Crescente Fértil). A causa remota que mais terá influenciado o surgimento dos factores de dominação da eurásia terá sido, de facto, a produção alimentar (agricultura e pastorícia), que surgiu primeiro na história da humanidade na zona do Crescente Fértil e se espalhou rapidamente ao longo do eixo paralelo (Leste-Oeste) para a Europa e Ásia, levando consigo invenções como a escrita, as técnicas militares, a organização política, e danos colaterais como os germes, passados ao homem pelos seus animais domésticos, e aos quais os euroasiáticos ganharam ao longo dos tempos imunidade. Essa mesma imunidade não foi adquirida pelos povos dos Novos Mundos que foram mais dizimados pelos germes que os seus conquistadores traziam nos seus corpos que pelas armas que traziam no porão dos seus navios.

Não deve hesitar em oferecer este livro a qualquer amigo racista de cabeça dura, pois se o seu conteúdo não o fizer ver que as diferenças culturais entre os povos, nomeadamente a dominação do mundo pelos povos euroasiáticos, não têm a sua razão de ser em diferenças biológicas e numa putativa superioridade rácica, mas antes em acasos e vicissitudes ambientais, geográficas e históricas que recuam aos primórdios da humanidade, talvez o peso das 490 páginas deixadas cair ?inadvertidamente? sobre a sua cabeça o faça.

TomaZ


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terça-feira, junho 14, 2005
 
António Damásio sobre as Emoções

Damásio começa por distinguir sentimentos, estados internos e privados, de emoções que são estados dirigidos para o exterior e públicos. Para Damásio sentimentos e emoções são dois estados distintos do organismo, e dá-nos como exemplo um caso de um paciente seu que sentia dores fortíssimas mas que não tinha os estados emocionais que normalmente correspondem a um sentimento de dor. Sentia-se estranhamente bem, apesar das dores.Quanto à visão predominante que durante o século XX separou emoção e razão Damásio considera que está definitivamente ultrapassada. A perspectiva evolucionista que percorre as ciências da mente diz-nos que o nosso sistema emocional surgiu antes do nosso sistema cognitivo consciente estando ambos intrincadamente ocupados em tarefas que permitam a sobrevivência do organismo. Os processos de raciocínio e tomada de decisão que constituem aquilo a que chamamos racionalidade não seriam possíveis sem a componente emocional: ?a emoção faz parte integrante dos processos de raciocínio e tomada de decisão.? (p. 61)Vimos então que as emoções subjazem àquilo que entendemos por racionalidade. Porém, donde surgem essas emoções? Qual o seu substrato? Segundo Damásio esse substrato é composto por mecanismos biológicos básicos, muito simples e que não dependem da consciência. Ou seja, na origem das emoções estão mecanismos biofísicos sem conteúdo mental que permitem que o organismo desenvolva de uma forma não consciente comportamentos que respondem de determinada maneira a estímulos exteriores e interiores e que preparam o organismo para a acção. A este processo biológico Damásio dá o nome de ?desencadear não consciente das emoções?.
O que são, então, as emoções e para que servem?De um modo muito sucinto, para Damásio emoções são processos biologicamente determinados (padrões químicos e neurais) cuja finalidade é ajudar o organismo a manter a vida. Processos biológicos esses que foram sendo moldados ao longo de muitos anos pela selecção natural. Para Damásio a função biológica das emoções é dupla: por um lado produz ?uma reacção específica para a situação indutora? e por outro regula o estado interno do organismo com vista a essa reacção específica. Ou seja, as emoções são a forma que a natureza encontrou para proporcionar aos organismos comportamentos rápidos e eficazes orientados para a sua sobrevivência. Podemos então dizer que, segundo Damásio, as emoções se encontram num patamar intermédio no sistema cognitivo humano: um degrau acima de sistema biofísicos ?cegos? como os reflexos, o sistema de regulação metabólica e as emoções de fundo como a dor e o prazer, assim como impulsos e motivações (ver Motivation by Peter Shizgal), e um degrau abaixo dos comportamentos conscientes e estados mentais cognitivos que caracterizam aquilo que entendemos por racionalidade. Conforme fica bem ilustrado no gráfico apresentado na página 76 deste livro, tanto os degraus superiores (estados conscientes do organismo) como os degraus inferiores (processos biofísicos do organismo) interagem uns com os outros através das emoções. Uma explicação evolucionista para este facto diz-nos que a forma como os nossos antepassados agiam e reagiam com os estímulos provenientes do seu meio ambiente foi-se padronizando sob a forma de sentimentos e emoções, primeiramente não conscientes, que se mostraram úteis para as tomadas de decisão do organismo, poupando-lhe tempo e energia. Da mesma forma que as emoções, também a consciência evoluiu como um equipamento de sobrevivência do organismo. Esta evolução em degraus, de estímulos cegos a sentimentos e emoções não consciente e, finalmente, a emoções e processos cognitivos conscientes e complexos indicam que, ?de uma forma ou de outra, a maior parte dos objectos e das situações conduzem a alguma reacção emocional?, que nenhuma experiência consciente é emocionalmente neutra ou, se quisermos, racionalmente pura. Esta razão purificada de elementos não racionais (o cocheiro que controla os cavalos, na metáfora platónica) teria o importante papel de impedir a ?tirania das emoções?. No entanto, diz-nos Damásio, ?os motores da razão também requerem emoção, o que significa que o poder da razão é por vezes bem modesto?. (p. 80)Fica então a pergunta: quão modesta é a nossa razão?

Bibliografia

O Sentimento de Si - António Damásio


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Normatividade

Uma regra é normativa quando é fruto de uma escolha ou de uma imposição. Por exemplo guiar pela direita é uma regra normativa, a lei da gravidade não. É costume em filosofia da mente afirmar-se que as atitudes proposicionais são uma atribuição normativa. Isto é, existem ?standards de racionalidade que dirigem a nossa atribuição de atitudes uns aos outros, apesar de ser impossível expressarmos estes standards em termos de leis ou regras específicas?. A própria posse de conceitos será uma questão normativa. Um computador actua segundo regras que lhe foram impostas, mas é pouco credível afirmar que um computador possui os conceitos dos objectos sobre os quais actua. Assim, afirmar que um ser humano é racional quando este na realidade também se rege por regras de raciocínio é uma afirmação puramente normativa.

Bibliografia

The Companion to the Philosophy of Mind - ed. Samuel Guttenplan (ed) Oxford, Blackwell Publishing, 1994


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Motivação para a Acção

De acordo com algumas experiências realizadas com ratos de laboratório a força motivadora de uma acção (aquilo que nos leva a avaliar de diferentes formas acontecimentos semelhantes, o impacto dos estímulos exteriores e a forma como agimos em relação a eles) é provocada por um conjunto de determinadas condições internas do agente. Por sua vez, a regulação dessas condições internas dependem de ?sinais que prevêm estados psicológicos futuros e de sinais que reflectem estados actuais.? Uma mudança num estado motivacional é acompanhada por mudanças comportamentais e neuronais. O toque do rato macho na fêmea com cio activa um reflexo comportamental. Num nível de maior complexidade comportamental e neuronal estes estados comportamentais interagem com processos cognitivos de forma a influenciarem o comportamento. Não há dúvida que os seres humanos usam estados abstractos para dirigir a avaliar o seu comportamento, no entanto os substratos psicológicos e neuronais desses estados abstractos motivadores podem ser do mesmo tipo daqueles estados que dirigem o comportamento biológico de outras espécies do reino animal. Recentemente têm sido feitos alguns esforços ao nível da IA com o intuito de descrever formalmente a influência da motivação no comportamento.

Bibliografia

The MIT Enciclopedia of Cognitive Sciences - ed. Robert Wilson and Frank Keil, Cambridge, MA, 1999


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terça-feira, junho 07, 2005
 
Vivam,

já está On-line a página do MLAG (Mind, Language and Action Group), sediado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto mas constituido por investigadores (professores e alunos) de diversas Universidades.

O MLAG desenvolve investigação em várias áreas da Filosofia da Mente como a Natureza das intenções, a Motivação para a acção, o modelo crença-desejo, emoções, teorias da mente, teorias da racionalidade, natureza do conhecimento, teoria da escolha racional e sua aplicação na economia, etc.

A página do MLAG encontra-se aqui: http://web.letras.up.pt/smiguens/mlag/index.html


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quinta-feira, abril 21, 2005
 
Se não quiserem perder uma oportunidade única de conhecer o autor deste blog apareçam aqui:

FACULDADE DE LETRAS - UNIVERSIDADE DO PORTO

INSTITUTO DE FILOSOFIA UNIDADE I&D 502 (FCT)

Gabinete de Filosofia Moderna e Contemporânea

SEMINÁRIOS DE FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Tomás Magalhães Carneiro

Mind Language and Action Group

"Para acabar de vez com o cognitivismo"

22 de Abril de 2005, 14:30, Instituto de filosofia


ps - Todos os espectadores serão revistados por seguranças grandes, fortes e maus que não permitirão a entrada de pistolas, facas e tomates. As manifestações de desagrado, desacordo ou simples dúvida estão terminantemente proibidas.


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domingo, abril 17, 2005
 

O que é uma acção racional?

Em filosofia da mente a racionalidade é entendida como um requisito de coerência da identidade pessoal: ?sem racionalidade não há agente.?
Um agente é considerado racional quando as suas acções se encontram harmonizadas com as suas crenças, desejos e intenções. Ou seja, com as suas representações e com os seus objectivos. Um conjunto de decisões, crenças e desejos completamente incoerentes não alcançariam o estatuto de racionais. Não passariam de frases soltas. No entanto os padrões de racionalidade da tradição filosófica do sec. XX (que derivam da concepção de agente racional de Newman e Hempel) colocam a fasquia da racionalidade demasiado alta. A ideia que subjaz a esta concepção de agência racional é a de que esta consiste na optimização das escolhas facultadas pelo sistema de crenças e desejos do agente. De acordo com esta concepção de racionalidade um agente que não procure maximizar a utilidade esperada das suas acções não é um agente racional. Esta teoria da racionalidade parece não ter em consideração que os seres humanos são psicologicamente limitados. Os estudos de psicólogos como Tversky e Kahneman demonstram que por norma não somos logicamente perfeitos ou mesmo consistentes nas nossas escolhas ou preferências. A irrrealidade do modelo ideal de racionalidade conduziram a duas reacções teóricas. Por um lado o materialismo eliminativista, segundo o qual conceitos como intencionalidade e racionalidade são pré-cientificos e são descartados como pseudoteóricos. Por outro lado a negação da ideia que um agente racional deve ser perfeitamente racional. A ideia de racionalidade mínima (defendida também por Cherniak em ?A Companion to the Philosophy of Mind?, Guttenplan) advoga uma via intermédia entre a unidade e coerência perfeitas do mental (os modelos idealistas de racionalidade) e a desintegração caótica do agente (o materialismo eliminativista). Herbert Simon considerava que a um agente racional bastava satisfazer, e não maximizar, a sua utilidade esperada. Stich e Cherniak também avançam modelos de racionalidade que aceitam e incorporam fenómenos psicológicos imperfeitos ? procedimentos heurísticos, ?rápidos mas sujos?, desenvolvidos para lidar de forma pragmática com o meio ambiente em que se inserem. O facto de, por vezes, aplicarmos essas nossas ferramentas a usos diferentes daqueles para os quais foram desenvolvidos pode explicar muita da irrracionalidade que, de um ponto de vista fomal, afecta os nossos processos de raciocínio.




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Intencionalidade

O significado filosófico de intencionalidade é o de ?dirigido a algum objecto?, quer este seja físico ou abstracto, existente ou inexistente. Para algo ser intencional é necessário que seja acerca de alguma coisa?. Estados mentais como crenças, desejos e arrependimentos são acerca de algo, ou seja, são intencionais. Para Brentano a marca distintiva do mental seria esta intencionalidade em relação a qualquer tipo de objecto (abstracto, inexistente, físico?). Ou seja, os estados mentais são intencionais de um modo que um estado físico nunca pode ser. Um estado físico nunca pode ser dirigida para algo que não seja também um estado físico. Como é bem patente, a tese de Brentano implica um dualismo cartesiano que separa mental e físico. Dificilmente os psicólogos cognitivos aceitarão que as representações e computações mentais que advogam sejam algo mais que estados do cérebro. No entanto fica-lhes por explicar como é que estados puramente físicos podem ter propriedades intencionais. A posição behaviorista e eliminativista passa por cima deste problema negando simplesmente que as pessoas tenham aquilo a que se chama estados intencionais. Actualmente a generalidade dos teóricos das ciências cognitivas acreditam que os estados intencionais do agente, assim como as suas atitudes proposicionais, são inerentes a estados do cérebro. A intencionalidade é considerada uma representação mental com propriedades semânticas. Essas representações são conceitos que implicam tanto uma interacção com outras representações internas (crenças, desejos, etc.) como com estados do mundo externo. São ?acerca de? algo pois referem-se ou designam algo.
Para Fodor e Sellars estes ?estados intencionais são simplesmente estados físicos com propriedades semânticas? cujos objectos são apenas os conteúdos representacionais. O problema desta posição está em saber como é que é possível (e se é possível) determinar o conteúdo semântico de algo físico. A psicosemântica de Fodor procura resolver esta questão.
Uma importante crítica a este modelo internalista vem de Hilary Putnam que com a sua experiência mental da ?Terra Gémea? procura demonstrar que as atitudes proposicionais de um agente não são determinadas apenas pelos seus estados internos: ?dois seres humanos podem ser idênticos molécula por molécula e mesmo assim apresentarem crenças e desejos diferentes?, pois essas atitudes proposicionais dependem de vários factores no seu contexto histórico e temporal. Segundo Putnam alguém na Terra Gémea poderia pensar estar a referir-se a água (H2O) quando na verdade não existia lá água nenhuma, mas uma coisa muito parecida (XYZ).
Assim, será necessário distinguirmos conteúdo alargado ? os conteúdos representacionais ? de conteúdo estrito ? aqueles determinados pelo conteúdo físico do agente.



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terça-feira, abril 05, 2005
 


Desejo

Os desejos parecem ser tanto uma fonte como um entrave à acção racional. Ao agir porque desejamos fazer algo estamos a expressar a individualidade que nos caracteriza enquanto seres humanos, mas esses mesmos desejos parecem por vezes entrar em conflito com aquilo que é racionalmente esperado de um agente moral. A discussão filosófica acerca dos desejos divide-se entre os que consideram que os desejos constituem a génese da acção e mesmo da acção moral (Spinoza, por exemplo, defendeu que consideramos bom aquilo que queremos), e os que procuram estabelecer um princípio da acção independente dos desejos (para Kant este princípio autónomo era a Vontade). Um dos objectivos da actual filosofia da mente é procurar compreender o papel que os estados mentais exercem no comportamentos humano, e no âmbito desta investigação o interesse pelo conteúdo semântico e intencional dos estados mentais como os desejos foi reavivado.
Agir racionalmente é agir intencionalmente e de acordo com os conteúdos das crenças e desejos que um agente possui. Mas o que é que é para um desejo ser acerca de alguma coisa? Um desejo é um estado com conteúdo cognitivo que determina qual o seu objecto? A sugestão behaviorista é que os estados mentais são disposições para nos comportarmos de determinada maneira, no entanto, o que os behavioristas erradamente ignoram é que são necessários outros estados interiores ao sujeito para que algo se qualifique como um desejo, nomeadamente a crença de que a acção desejada terá a consequência pretendida. O comportamento racional exige uma coordenação entre crenças e desejos.
Porém, para defendermos a posição de que desejos são razões para agir temos de reconhecer a existência de factores que determinam o objecto dos desejos, independentemente das crenças, pois ?um desejo não é uma mera disposição para agir, é uma razão para agir.? Aqui coloca-se o problema do conteúdo representacional dos desejos. Se negarmos, como Hume fez, que os desejos tenham conteúdo representacional, somos levados a identificar o objecto do desejo com o estado que conduz ao comportamento que satisfará esse desejo. Segundo esta posição um desejo não depende necessariamente de uma crença. O exemplo de que temos sono e que queremos dormir independentemente de acreditarmos que o sono é benéfico para a saúde, parece ser um bom argumento a favor de uma certa modularidade na geração dos desejos.
Uma analogia entre desejos e estados perceptivos identificaria a origem dos desejos num qualquer estado corporal ? um estado de privação ou necessidade. E identificando estas causas biológicas dos desejos encontramos o seu conteúdo semântico independente do conteúdo das crenças.


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segunda-feira, março 14, 2005
 


Emoções

Segundo Oatley emoções são estados ou processos psicológicos que gerem os objectivos dos agentes. A função principal de uma emoção é indicar ao agente, de um modo rápido e eficaz, como este deve agir em determinada situação. Uma emoção escolhe, veta ou dá prioridade a certos objectivos e planos de acção em vez de outros.
Ao longo da história da filosofia vários filósofos se interessaram pelas emoções, entre eles os Estóicos, Aristóteles, Descartes, Espinosa e Hume. A abordagem tradicional à problemática das emoções é uma abordagem cognitivista (na senda de Aristóteles para quem as emoções eram espécies de avaliações cognitivas de eventos) e negativista (desde os Estóicos a grande maioria dos teóricos das emoções encaram-nas como prejudiciais à razão).
William James foi o primeiro a aportar uma teoria não cognitivista ao estudo das emoções considerando-as supervenientes em relação a estados corporais físicos. Segundo o ponto de vista jamesiano uma emoção é uma percepção de uma reacção fisiológica que o corpo tem face a um vento qualquer mas que ocorre depois do processo de produção do comportamento.
Hoje em dia a ideia geral é que o ponto de vista negativo acerca das emoções está fundamentalmente errado. A função das emoções na produção de comportamento racional é reconhecida por todos os estudiosos do campo.
Herbert Simon sublinha o papel gerenciador que as emoções desempenham nos processos cognitivos (1) poupando tempo e energia aos mecanismos de cognição, (2) escolhendo entre caminhos de acção, (3) ajudando nos processos de socialização e cooperação entre indivíduos.
São raras as soluções puramente racionais aos problemas que nos surgem [segundo alguns autores elas são mesmo inexistentes ? Mameli].
O sistema emocional humano fornece-nos estratégias e heurísticas para a resolução de problemas que evoluíram com o tempo e se incrustaram no nosso ADN. Uma forma de compreender algumas das limitações e paradoxos da racionalidade humana é encontrando os pontos de colisão entre o que as nossas ferramentas esperam (no sentido em que foram desenvolvidas para) encontrar no mundo e aquilo que verdadeiramente encontram. [ver também Nozick, The Nature of Rationality]



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Emotion, Evolution and Rationality, Dylan Evans and Pierre Cruse (ed), Oxford, Oxford University Press

Este livro reúne uma série de artigos de algumas das leading figures da investigação em ciência cognitiva acerca do papel das emoções no comportamento humano, em particular na racionalidade prática.

Desde Platão até aos nossos dias a ideia dominante (sobretudo no ocidente) é de que as emoções são um entrave ao comportamento racional dos seres humanos, pelo que ao opormos razão a emoção julgamos estar a separar lógica de intuição, pensamento racional de pensamento irracional, verdade de falsidade. A imagem prevalecente é a da razão como um cocheiro que tem de controlar pelas rédeas os seus indomáveis ?puros sangues?, as emoções. Mas o que as mais recentes investigações empíricas nos dizem é que esta imagem não descreve a forma como realmente opera a nossa razão, sugerindo que a devemos deixar cair juntamente com alguns outros mitos acerca do que é a racionalidade humana e do que é ser racional. Depois de milhares de anos em que foram reprimidas e afastadas dos estudos sérios acerca da racionalidade as emoções são hoje em dia consideradas por filósofos da mente, psicólogos e neurocientistas como ?vitais para a acção inteligente?.

O tema deste livro, como se compreende logo pelo título, é a relação entre as emoções, a evolução e a racionalidade. Quem estranhar o que faz a evolução no meio destas duas capacidades cognitivas humanas é por que anda completamente alheado do poder explicativo deste conceito que Dennett ironicamente cunhou de ?ideia perigosa?. A evolução é, por excelência, o processo cognitivo da natureza e foi evolutivamente que a razão humana atingiu o elevado grau de complexidade que conhecemos e que lhe permite, inclusive, estudar-se a ela própria. Ao encarar a racionalidade humana (e não só!) como o culminar de um lento processo de evolução por selecção natural compreendemos que esta não pode ter surgido como que por magia, mas como tudo na natureza, desempenha um papel específico e necessário na manutenção da vida dos organismos que desenvolveram formas de racionalidade adaptadas aos seus meios ambientes. O que esta ?ideia perigosa? nos diz não é apenas que temos de repensar as nossas emoções encarando a forma como estas terão evoluído a partir de formas biológicas mais simples e directas (como os reflexos) e o modo como se encontram omnipresentes nos nossos processos de raciocínio, mas diz-nos também que temos de repensar os nossos próprios conceitos de racionalidade e irracionalidade, frequentemente pejados de preconceitos idealizantes, irrealistas e, esses sim, perigosos.

Este livro está dividido em quatro partes. Na primeira parte, ?Neuroscientific foundations?, o português António Damásio compara a sua teoria das emoções com a de William James. Segundo Damásio a sua teoria é ?jamesiana? quando diz que as emoções e os sentimentos são essencialmente mudanças corporais. No entanto Damásio avança alguns passos em relação a James afirmando que as emoções podem ter origem em mapas corporais, os conhecidos marcadores somáticos de Damásio, que simulam estados corporais que na realidade não estão a acontecer. Um modo que a evolução (cá está!) encontrou para poupar tempo e energia.

Na segunda parte, ?Emotion, belief and appraisal?, procura-se distinguir e relacionar emoções básicas (biológicas, instintivas, pré-conscientes) e atitudes proposicionais mais complexas (culturais, verbalizadas, conscientes). Nesta secção temos um vislumbre do vibrante diálogo entre teorias cognitivas das emoções (embora nenhum destes autores assuma uma posição puramente cognitivista), que afirmam que as emoções têm conteúdo cognitivo, e teorias não cognitivas das emoções, segundo as quais as emoções são estados biologicamente básicos, sem conteúdo cognitivo. No primeiro artigo desta segunda parte, ?Emotional behaviour and the scope of belief-desire explanation?, Finn Spicer pergunta se atitudes proposicionais como desejos e crenças produzem e controlam o nosso comportamento, como pretendia David Hume. Segundo Spicer as explicações cognitivistas (humeanas) podem por vezes capturar a forma como a acção decorre das emoções, mas existe um certo tipo de comportamento emocional, que funciona ao nível sub-pessoal, e que não é explicado pelo padrão humeano. No segundo artigo Jesse Prinz quer saber quais as emoções básicas ("Whitch emotions are basic?"). Para ele as emoções podem ser ao mesmo tempo corpóreas e socialmente construídas. A cultura influencia a formação de algumas emoções, mas mesmo estas pressupõem emoções biologicamente básicas. Aquelas emoções que normalmente consideramos básicas (felicidade, surpresa, medo, angústia ? as nossas emoções verbalizadas) podem não ser biologicamente básicas, mas são certamente psicologicamente básicas. Ou seja, estas emoções consideradas básicas podem não ser inatas, mas antes o produto de outras emoções (ou estados corporais) ainda mais fundamentais, informadas por aspectos culturais. Em ?Towards a Machiavellian theory of emotional appraisal? Paul Griffiths acredita que tanto as emoções básicas como as emoções superiores podem ser compreendidas em termos de estratégias acerca daquilo que é bom para o sistema num determinado meio ambiente. No entanto, as emoções mais básicas fogem a uma eficaz classificação semântica. Griffiths diz que as devemos encarar como sub-conceptuais e, como tal, desenvolver vários níveis de ?teorias de avaliação emocional?.

Na terceira parte, ?Evolution and the rationality of emotions?, a mais revolucionária das quatro que compõem o livro, são-nos oferecidas algumas novas perspectivas sobre o que se entende por racionalidade e irracionalidade. Em ?Evolution, culture and the irrationality of the emotions? Chandra Sripada e Stephen Stich avançam a hipótese de as emoções estarem ligadas a objectivos e valores mentalmente representados, a que chamam de ?estrutura de valores? (value structure). Quando estas estruturas num organismo ou sistema são disfuncionais (i.e. ecologicamente mal adaptadas) conduzem naturalmente a emoções e a comportamentos irracionais. Sripada e Stich defendem, como se entende, uma concepção pragmatista e contextualista de racionalidade. Em traços gerais, é racional o que é favorável ao sujeito tendo em conta o meio ambiente em que este se insere e é irracional o que não lhe é favorável. Estes dois autores desmistificam também um pouco a ideia de evolução por selecção natural que alguns compreendem de forma ingénua. Segundo Sripada e Stich nem tudo o que evolui por selecção natural é bom. Do facto de as emoções serem desenhadas (designed) pela selecção natural não se segue que elas necessariamente desempenhem um papel positivo no processo de tomada de decisão racional. De acordo com António Damásio o papel das emoções é o de reduzir o número de opções a serem avaliadas pela análise racional e não emocional de custo-benefício aquando do processo de tomada de decisão, ou como afirma Dylan Evans em ?The search hypothesis of emotion?, as emoções impedem que nos percamos em infindáveis explorações entre opções de acção potencialmente infinitas, providenciando-nos uma estratégia de busca adequada a cada problema com que nos deparamos (para este problema da escolha racional ver o paradoxo do burro de Buridan). No seu artigo, ?The role of emotions in ecological and practical rationality?, Matteo Mameli ?arrisca? um pouco mais que Damásio e Evans afirmando que nos seres humanos a escolha entre diferentes vias de acção é sempre determinada pelas emoções. As nossas capacidades deliberativas foram construídas (mais uma vez a ?ideia perigosa?) em cima das nossas capacidade emocionais e estão, por isso, inextrincavelmente ligadas a estas. É por esse motivo que apenas somos capazes de decidir quando ajudados pelas nossas emoções. De acordo com Mameli uma decisão nunca é puramente racional, são sentimentos inconscientes que determinam a acção. É fácil compreender as implicações éticas que uma teoria como esta poderá ter, nomeadamente em questões de livre arbítrio e de responsabilidade moral.

Na quarta e última parte, a mais filosófica e interessante deste livro, Peter Goldie procura superar a perplexidade a que uma posição como a de Mameli nos conduz. No seu artigo, ?Emotion, Reason and Virtue?, afirma que se é verdade que as emoções nos ajudam a conhecer o mundo que nos rodeia (como Damásio e Evans afirmam) também é verdade que elas podem encher esse nosso conhecimento de preconceitos e má fé desvirtuando o nosso ?horizonte epistémico?. Segundo Goldie, se estivermos na disposição emocional adequada veremos as coisas como elas são, o mesmo não se passa se estivermos num estado emocional alterado. Assim, como nunca nos encontramos num ponto de vista desapaixonado, exterior às nossas emoções, nunca poderemos vir a saber se as nossas emoções são as mais acertadas. Como tal Goldie afirma que devemos postular um requisito de virtude intelectual que reconhecemos como razoável, mas que não sabemos como justificar empiricamente. Um requisito normativo, portanto. Para sermos intelectualmente virtuosos devemos em primeiro lugar ser moralmente virtuosos e para isso devemos ?afinar? as nossas emoções, competências, comportamento e hábitos. Para Goldie, os estados disposicionais das pessoas estão sob o seu controlo, mesmo que algumas emoções em particular não o estejam. Como tal, é possível responsabilizar alguém cujas emoções injustificadas estejam em dissonância com o mundo.

O que se percebe da leitura dos artigos que compõem este livro é que a imagem do cocheiro racional a controlar as emoções potencialmente desenfreadas caducou definitivamente. O cocheiro saltou fora da carruagem em andamento, os cavalos indomáveis tomaram o comando das rédeas confundindo-se com a própria carruagem. Cabe-lhes agora domarem-se uns aos outros, puxando pelos freios uns dos outros impedindo que uns puxem mais para um lado que para o outro. A estrada é estreita, o piso escorregadio e o cocheiro ficou apeado. Sem dúvida que a viagem se tornou muito mais emocionante.



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