Via da Verdade

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sexta-feira, julho 02, 2004
 
William No no seu blog NoLand 2047 escreveu: Gostaria de começar por explorar o ponto de vista de Heidegger segundo o qual o homem se comporta como se fosse o mestre da linguagem, quando no fundo é ela o mestre que o molda: pensamos que estamos a usá-la mas é ela que pensa e fala através de nós.

Caro William, o noema heideggariano da "linguagem como a casa do ser" sempre me foi completamente incompreensível. E o pouco que compreendo dessa salgalhada julgo estar absolutamente errado.
Segundo esse ponto de vista (construtivista) é a nossa linguagem que constrói o mundo. Algo assim foi também defendido por Benjamin Lee Whorf e pelos estruturalistas. O que fazem todos estes autores é partir de uma teoria da linguagem encontrada a priori e a partir dela descrever um mundo e uma realidade que se adapte às suas fantasias mais ou menos imaginativas.

Eu defendo a perspectiva oposta, segundo a qual é o mundo, tal qual existe fora de nós, e que nos é descrito pelas ciências, que constrói a linguagem. Ou seja para compreendermos a linguagem, a sua origem, o significado das palavras e conceitos, a competência linguística dos falantes, etc., devemos partir da realidade que nos é descrita pela psicologia, pela antropologia, pela arqueologia, pelas ciências cognitivas, pelas ciências computacionais, etc., para, a posteriori, chegarmos a uma teoria da linguagem verdadeiramente fundamentada.

Espero aprofundar este tema nas próximas semanas. Deixa que passe a euforia do Euro e que volte a depressão nacional, para que, de cabeça livre dos dribles do Cristiano Ronaldo, dos passes do Deco e dos remates do Figo, me volte a debruçar sobres estes e outros temas menores.

um abraço.



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segunda-feira, junho 28, 2004
 
a pedido da Ana R.

Estruturalismo -

Linhas Gerais

O estruturalismo foi um movimento intelectual que teve o seu apogeu em França na década de 60 do século XX. A ideia comum a todas as abordagens estruturalistas (antroplógica, sociológica, económica, psicanalítica, etc.) é a de que por detrás dos fenómenos de superfície (mitos, rituais, regras culturais e de convivência social, manifestações artísticas, etc.) existem leis constantes que os regem.
Ao procurarem definir métodos exactos de investigação que permitissem saber o que é que se podia efectivamente aceitar como um facto, ou seja ao tentarem tornar mais científicas as ciências humanas, os estruturalistas inspiraram-se na matemática e na linguística de Ferdinand Saussure para quem todos os sistemas de signos são linguísticos por natureza.

Os estrututalistas Levi-Strauss, Jacques Lacan, Althusser, Barthes foram buscar a ideia saussureana de que as unidades linguísticas (sons, palavras...) só ganham sentido numa rede de relações, ou seja, no contexto de uma linguagem, e aplicaram-na aos seus respectivos campos de investigação.
Assim, o antropologista Lévi-Strauss diz-nos que do mesmo modo que, segundo Saussure, as palavras e os sons (unidades linguísticas) só ganham sentido num sistema (no contexto de uma linguagem), também os fenómenos humanos (como o casamento, a proibição do incesto, os mitos, etc.) só ganham sentido dentro do sistema em que estão inseridos.

Ou seja:
1) Da mesma forma que as unidades linguísticas em Saussure, as relações de parentesco (que Lévi-Strauss estuda em "As estruturas elementares de parentesco") constituem sistemas.
2) Por debaixo destes sistemas existem estruturas inconscientes que funcionam como leis.
3) Estas estruturas constroem-se devido a trocas. E a troca é o mesmo que comunicação, simplesmente o que aqui se troca não são sons e palavras, mas relações, pessoas, etc.
É porque consideram que toda a cultura e tudo o que é essencialmente humano é comunicação (troca), que Lévi-Strauss e os estruturalistas retiram os seus métodos de investigação da linguística de Saussure.

Um fenómeno (um mito, uma regra social, uma lei económica, etc.) por si só não prova nada. O que prova é o sistema que o traz à luz e o organiza de forma inteligível.
Todos os factos fundamentais da vida humna são relacionais e estruturais. Ou seja, só podem ser compreendidos se olharmos para lá dos simples factos, para as relações que os constituem.
Estas relações (estruturas) podem estar escondidas mas os fenómenos que estão à vista derivam dessas estruturas escondidas.

Conclusão

Se tudo deriva destas estruturas escondidas (o inconsciente colectivo) o homem não é um ser livre (como pretendia, por exemplo, o existencialista Jean Paul Sartre), mas, antes, todas as suas vivências estão determinadas pelas leis da natureza, pelas leis do grupo, pelas tais estruturas escondidas que os estruturalistas pretendem revelar. É neste sentido que os críticos do estruturalismo o acusam de ser um anti-humanismo - sendo que o humanismo tradicional proclama a liberdade essencial do ser humano.





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terça-feira, junho 08, 2004
 
a pedido da Mónica...

A Morte de Deus, a Vontade de Poder e o Eterno Retorno no Zaratustra de Nietzsche.*

Introdução

A obra Assim Falava Zaratustra deve ser lida como um romance de formação dentro de uma concepção trágica da vida. Nesta obra, publicada em 1881, efectua-se pela primeira vez em filosofia a passagem de uma linguagem conceptual, argumentativa, teórica e sistemática (ou seja, uma linguagem tipicamente filosófica), para uma linguagem artística, poética, narrativa e dramática. Com o Zaratustra Nietzsche pretendeu retomar a forma da tragédia e da epopeia gregas (elogiada já em "A Origem da Tragédia") numa tentativa de "soltar" a palavra do conceito, expressão da racionalidade ocidental que tanto o repugna. Nietzsche não é um pensador sistemático, é um intempestivo, e é através da narrativa e do drama que pretende libertar a filosofia ocidental do sistema.

Análise

No início do primeiro livro, Zaratustra está num estado de plenitude. Dez anos de solidão em que esteve isolado na montanha curaram-no do niilismo. Ao descer da montanha Zaratustra encontra um ancião que o reconhece: Este viandante (...) passou por aqui há muitos anos. Chamava-se Zaratustra mas mudou. Nesse tempo levavas as tuas cinzas para a montanha; é o teu fogo que levas agora para o vale? Não te arreceias do castigo reservado aos incendiários? Zaratustra desce da montanha em fogo, pronto a incendiar o mundo dos homens. Na montanha Zaratustra descobriu que Deus morreu e quer agora anunciar essa morte aos homens no vale.
Qual é o significado da morte de Deus? A morte de Deus é a constatação de que a filosofia, ou seja, as grandes questões que sempre atormentaram o homem, já não encontram o seu fundamento em Deus, mas no homem. Zaratustra (Nietzsche) não mata Deus, apenas constata e anuncia a sua morte, a sua substituição pelo homem. - Kant perguntava-se por aquilo que o homem pode conhecer. Os valores cristãos desapareceram, os valores da modernidade que Zaratustra descobriu são humanos demasiadamente humanos.
Se Deus morreu qual o fundamento último dos nossos valores? Como não entrar no desespero face a esta orfandade? Como não cair no niilismo. É aqui que Zaratustra se anuncia como mestre do super-homem. Para impedir que o homem caia no niilismo passivo face à morte de Deus, Zaratustra irá falar-lhe do super-homem, aquele que supera o mundo do além valorizando a própria terra.
No entanto, a missão deste mestre do super-homem fracassa. Zaratustra não consegue que o ouçam. Não consegue ensinar o povo na feira, que prefere o último homem, o nada da vontade ao super-homem. Como tal, Zaratustra desiste de falar ao povo, aos homens reactivos e passivos que se limitam a imitar e a repetir os valores apreendidos: É longe da feira e da fama que estão os verdadeiros criadores.
Quando Zaratustra descobre que o povo não sabe que Deus morreu muda de estratégia. Recua até à criação de Deus pelo homem. Não é Deus o criador, é o homem que tem vontade criadora. O primeiro livro de Assim Falava Zaratustra é uma oposição entre Deus e o super-homem. Zaratustra dirige-se não mais ao povo mas aos criadores: Quero unir-me aos criadores. Zaratustra quer ensiná-los e motivá-los a agir, a criar os seus próprios valores. Pensar é criar novas tábuas e não seguir as antigas.
É a criação que coloca o homem no caminho do super-homem. (note-se a referência inicial ao Zaratustra como um romance de formação).
Durante o primeiro livro e no início do segundo, Zaratustra surge-nos como uma personagem apolínea. Nos três cantos do segundo livro (Canto Nocturno, Canto da Dança e Canto do Túmulo), Zaratustra aparece-nos pela primeira vez a cantar. Canta ditirambos dionisíacos. Estes três cantos devem ser lidos como uma auto-crítica do próprio Nietzsche que ainda se sente muito metafísico, ainda muito ligado a Schopenhauer, a Wagner e a Kant. Ainda não é o filósofo trágico que deseja ser.
É a partir desta altura que surgem os dois grandes temas da obra, além da Morte de Deus: a Vontade de Poder e o Eterno Retorno.

A Vontade de Poder é o princípio pelo qual a vida se projecta além de si própria. A vida é o único critério de valor. Como tal, os valores que o homem criou, os valores do além, são valores ilusórios que negam aquilo que realmente tem valor, a vida. Os valores cristãos são inferiores aos valores que afirmam a vida.
Mesmo o homem moderno, que sabe que Deus morreu, recusa-se a aceitar a vida. Substitui Deus pela eternidade, pelo futuro. Zaratustra quer trazer o homem de volta ao instante terreno, de volta à vida, por forma a superar o niilismo. E isso só será possível quando deixar de procurar substituir Deus. É a própria vida que nos leva a formar valores, escreve Nietzsche em O Crepúsculo dos Ídolos.

A teoria do Eterno Retorno, a ideia mais radical da filosofia de Nietzsche, apresentada pela primeira vez explicitamente no Zaratustra, é condição essencial para a superação do niilismo, a relação afirmativa do homem com a vida. No fim do segundo livro, Zaratustra abandona os seus discípulos tornando-se ele mesmo discípulo. Zaratustra quer superar a crença na oposição de valores. A ideia do Eterno Retorno é a sua possibilidade de realizar uma filosofia trágica.

Dois aspectos da doutrina do Eterno Retorno:

1) Doutrina Física/Cosmológica do Eterno Retorno: há um movimento circular do tempo e das coisas. Tudo volta a acontecer uma infinidade de vezes. Com a ideia de Eterno Retorno, nesta acepção cosmológica, Nietzsche insurge-se contra a noção de um momento inicial do tempo afirmando a sua infinitude.

2) Doutrina Ética do Eterno Retorno: a ética de Nietszche é uma ética imanente, diz respeito aos valores vitais (intensidade, força, potência) e não aos valores transcendentes e universais da moral (dever, Bem, Mal...). Nietzsche valoriza a vida vivida intensamente, vivida ao máximo das nossas capacidades.
No sentido ético, a doutrina do Eterno Retorno diz respeito à vontade humana: Se em tudo o que quisermos fazer nos perguntarmos se queremos fazê-lo uma eternidade de vezes, isso será para nós o mais sólido centro de gravidade. Ou seja, tudo aquilo que quisermos, devemos querer que volte uma eternidade de vezes.

Numa leitura do Zaratustra, este sentido ético deverá prevalecer sobre o sentido físico / cosmológico. Para Nietzsche é a Vontade de Poder que liberta o homem do niilismo passivo. O homem que é capaz de querer o eterno retorno de todas a coisas (das boas e das más) é o mais feliz dos homens, que já não vive atormentado pelo desespero do nada.
Devemos, então, viver como se tudo voltasse eternamente. Assim, se cada momento voltar uma infinitude de vezes, devemos vivê-lo o mais intensamente e alegremente possível. Amar a vida com o máximo de intensidade é o que Nietzsche entende por Amor Fati.

Conclusão

Assim, a ideia de um Eterno Retorno cosmológico deve ser entendida como uma mera metáfora, uma mentira poética, tanto mais que é fugazmente referida por Nietzsche em A Gaia Ciência e rapidamente desaparece da sua obra. Esta mentira poética serve para pôr em cena o pensamento ético de Nietzsche, o Amor Fati. Afirmar éticamente o Eterno Retorno é dizer: foi assim que se passou, assim eu quis.

* notas tiradas na conferência do prof. Roberto Machado na Flup.


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segunda-feira, maio 24, 2004
 
Aquém e Além do Cérebro*

2ª sessão
. A consciência e o cérebro

A Dinâmica Temporal da Visão Consciente - Dominic ffytche

Se aceitarmos que a actividade neural subjaz a percepção consciente, a percepção consciente tem de demorar um certo tempo - o tempo neural das velocidades de conductividade, das sinapses, do feedback, etc. Ou seja, quando pensamos que estamos a ver um objecto é provável que esse objecto já tenha sido processado pelo nosso cérebro uns milésimos de segundo antes.
O trabalho do Professor ffytche demonstra que as várias áreas de reconhecimento de um objecto são estimuladas em diferentes alturas: O Lóbulo Occipital "dispara" 100 milésimos de segundo após o primeiro estímulo, o Lóbulo Parietal, 200 ms e o Lóbulo Frontal 400 ms após esse primeiro estímulo.
Estes estudos do Professor ffytche confirmam os dados de Benjamin Libet (bastante citado durante todo o simpósio) que demonstram que os neurónios que disparam quando temos uma percepção visual são os do Lóbulo Occipital (100 ms), ou seja, da área visual primária e que, depois do estímulo sensorial sucedem-se no cérebro uma série de actividades que precedem/preparam a percepção e a tomada de consciência da percepção. O que isto significa é que o tempo neural antecede o tempo perceptual em bastantes milésimos de segundos. Existe, portanto, uma preparação inconsciente para a percepção consciente. Ainda segundo Libet, a consciência surge ainda mais tarde neste processo, 1/2 mais tarde, o que em tempo neural é bastante tempo.

Conclusão: Que a nossa percepção e a consciência dessa percepção estão atrasadas é um facto. As consequências neurológicas e filosóficas deste atraso devem ser, pois, motivo de discussão.

* notas sobre o 5º Simpósio Aquém e Além do Cérebro, realizado de 31 de Março a 3 de Abril de 2004 pela Fundação Bial.


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Aquém e Além do Cérebro*

2ª sessão
. A consciência e o cérebro

Os conteúdos da consciência - Geraint Rees

As investigações de Geraint Rees, Professor de Neorologia no University College de Londres, procuram compreender a base neural da consciência nos seres humanos prestando particular atenção à percepção visual.
O nosso cortex visual representa o mundo visual, ou seja, a actividade de certas áreas especializadas é necessária para a percepção visual, no entanto não é suficiente para a representação visual consciente. Para essa representação visual consciente é necessária a contribuição das áreas parietal e pré-frontal. É necessário, então, que haja uma interacção entre essas áreas e o cortex visual. Tal interacção servirá para integrar as nossas percepções visuais no contexto comportamental (mais lato) em que essas percepções ocorrem.
Essas interacções entre diferentes áreas do nosso cérebro contribuem certamente para o enriquecimento das nossas experiências conscientes e dão-nos um consistente substracto neural para as nossas experiências visuais conscientes.

Referindo-se à proposta do Professor Stephen Kosslyn de direccionar as técnicas de neuroimagem para o estudo de determinadas áreas do cérebro e de as relacionar com tarefas específicas (ver Via da Verdade - Se a neuroimagem é a resposta, qual é a pergunta? de Stephen Kosslyn), Geraint Rees sugere que outro contributo importante que as técnicas de neuroimagem podem dar é o da análise das respostas de determinadas áreas a determinados estímulos.

* notas sobre o 5º Simpósio Aquém e Além do Cérebro, realizado de 31 de Março a 3 de Abril de 2004 pela Fundação Bial.


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Aquém e Além do Cérebro*

1ª sessão. Metodologias Mente-Cérebro: problemas e avanços.

Se a neuroimagem é a resposta, qual é a pergunta? - Stephen Kosslyn*

Nas suas investigações, o Professor Kosslyn, docente de psicologia na Universidade de Harvard, tem procurado clarificar a ligação entre os eventos mentais e a experiência, dedicando-se sobretudo à cognição visual. Mais concretamente procurando compreender a forma como se deve aplicar a metodologia moderna, como as técnicas de neuroimagem, à compreensão do cérebro.

Segundo Stephen Kosslyn, a complexidade do cérebro humano obriga a uma abordagem programática, mais própria das ciências empíricas que, por exemplo, da filosofia. Existem demasiadas áreas cerebrais envolvidas no processamento de informação: memória espacial, memória dos objectos, memórias associadas, etc. Para tirarmos o melhor proveito das técnicas de neuroimagem devemos dirigir os nossos inquéritos para perguntas concretas sobre as áreas e funções específicas. Quais são, então, essas perguntas?

Kosslyn apresenta dois grandes grupos de perguntas que devem orientar as nossas investigações:

1 - Como é que é implementado no cérebro o processamento de informação? ;
2 - Quando é que os processos e as estruturas específicas são utilizados no processamento de informação?

1 - Quanto ao primeiro grupo importa saber:

1.1 - Que áreas implementam sistemas com funções específicas?

Kosslyn fala de conexões recíprocas no sistema neural, em que uma área dá e recebe informação de outras áreas. Para sustentar esta hipótese Kosslyn refere algumas experiências efectuadas em primatas a quem foram removidas áreas específicas do cérebro (memória espacial, memória dos objecots, visão espacial, visão dos objectos) que levam à conclusão de que já existem dados no cérebro que precedem o processamento de informação. Casos de reconhecimento sem identificação (ou seja, em que existe reconhecimento físico mas não consciente) indicam que o processamento (físico) das propriedades do objecto teve lugar, mas não a activação das memórias associadas. O processamento de informação associa as áreas das propriedades dos objectos às áreas das propriedades espaciais e às memórias associativas. No caso de uma visão não canónica de um objecto (um ponto de vista estranho, por exemplo), o processamento de informação pode inverter o seu sentido (das memórias associativas às propriedades espaciais, às propriedades dos objectos), por forma a conseguir um correcto processamento da informação.

1.2 - Que áreas implementam sistemas simples?

1.3 - Que operação específica corresponde a uma área cerebral específica?
É, por exemplo, possível estimular a percepção de uma cor onde não há cor nenhuma.

1.4 - Que propriedades de estruturas subjazem a uma capacidade particular?

1.5 - Podem múltiplos processos estar na base de uma capacidade em particular?
Segundo o Professor Kosslyn, sim.


2 - Quanto ao segundo grupo, Kosslyn quer investigar:

2.1 - O modo como é inferido um processo pela presença de activação (body-engaged).

2.2 - A variação de activação necessária para prever uma acção.

Segundo Kosslyn, prever determinada tarefa ajuda a activar uma determinada área.

2.3 - Como é que o processamento varia com a prática?

2.4 - Como é que o processamento varia com o contexto?
Está provado que o contexto de uma acção influencia o seu processamento. Kosslyn dá o exemplo de casos em que uma tarefa mecânica torna-se mais difícil que uma tarefa manual conceptualmente semelhante.

2.5 - Como é que o processamento depende de processamentos anteriores?


Conclusão: Para tirarmos o melhor proveito das técnicas de neuroimagem no estudo do cérebro temos de dirigir as nossas investigações para perguntas concretas sobre áreas e funções específicas. Perguntas que dirijam os nossos olhares para tarefas específicas, fazendo desse modo a ligação necessária entre a neuroimagem e os estudo comportamentais.

* notas sobre o 5º Simpósio Aquém e Além do Cérebro, realizado de 31 de Março a 3 de Abril de 2004 pela Fundação Bial.

* entrevista de Stephen Kosslyn ao jornal Público


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sexta-feira, maio 21, 2004
 
Aquém e Além do Cérebro*

1ª sessão. Metodologias Mente-Cérebro: problemas e avanços.

Processos não conscientes precedendo decisões intuitivas - Dick Bierman

A conferência de Dick Bierman, Professor de Parapsicologia na Universidade de Amesterdão, serviu para apresentar um novo método para estudar a hipótese do Marcador Somático avançada por António Damásio na sua tentativa de encontrar um fundamento biológico para a mente. O método proposto por Bierman substitui o método de medição do Marcador Somático usado de condução pela pele, pelo método de gravação do movimentos do olho e de dilatação da pupila. Conseguindo-se assim uma maior precisão na medição dos processos físicos que ocorrem no corpo antes de ser tomada uma decisão consciente.

Segundo Bierman, na tomada de decisões entram em jogo três factores:

- A aprendizagem implícita
- O desenvolvimento do Marcador Somático
- A tomada de atenção (inconsciente) ao Marcador Somático resulta em situações vantajosas para o organismo.

Vários testes empíricos confirmam que a teoria de Damásio está correcta e que o Marcador Somático conduz, de facto, o processo de decisão. Há de facto um aumento da condutividade da pele antes de ser tomada uma decisão. No entanto, este processo ocorre apenas na fase pré-conceptual, quando são tomadas decisões intuitivas (quando há pouco tempo ou quando existem poucos dados).
Uma tomada de posição, diz-nos Bierman, passa-se portanto Aquém do Cérebro. São processos físicos, devidamento identificados, que causam os nossos estados mentais. Isto, hoje em dia, é quase um truísmo. Mas, e Além do Cérebro? Será que a projecção de acontecimentos futuros influenciam a tomada de decisões? Existem razões para acreditar que sim, que o organismo consegue prever o futuro, ou seja, é pré-senciente. Estudos acerca dos níveis de condutividade da pele antes de o organismo ser estimulado físicamente indicam que a sua reacção é pré-senciente.
Ou seja, aos três factores de acesso à intuição, que vimos atrás:

- A aprendizagem implícita
- O desenvolvimento do Marcador Somático
- Atenção ao Marcador somático

Temos agora que acrescentar um outro:

- A pré-senciência

As conclusões finais de Bierman confirmam a hipótese do Marcador Somático e a importância do conhecimento implícito e do conhecimento explícito na tomada de decisões.

A pergunta que Bierman deixa para uma possível linha de investigação futura é se será possível incluir todos os aspectos da intuição (incluindo a pré-senciencia) num "paradigma de intuição unificado".


* notas sobre o 5º Simpósio Aquém e Além do Cérebro, realizado de 31 de Março a 3 de Abril de 2004 pela Fundação Bial.


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terça-feira, maio 18, 2004
 
Diálogos entre um neurobiólogo e um filósofo V

O Desejo e a Norma

1. Das Disposições naturais aos dispositivos éticos

Paul Ricouer - Voltemo-nos agora para as origens das nossas condutas morais na evolução das espécies. (...) Temos de conhecer bem a originalidade das categorias próprias da reflexão ética para sabermos se existe um conhecimento neuronal. A priori não contestei a possibilidade de existir algum. Pretendi simplesmente afirmar a autonomia da fenomenologia em relação à ciência neuronal.
No que se refere à origem da moral, estamos perante um caso de amálgama semântica: origem no sentido de antecedência, para falar como Darwin, ou origem como justificação.

Jean-Pierre Changeaux - Amálgama essa que eu não faço. Origem para mim, significa descendência, antecedência e, sobretudo, ponto de partida.

Paul Ricouer - A amálgama de que falei é ainda mais grave quando se trata da palavra fundamento, que tanto pode significar substracto (a base neural, por exemplo) como legitimação a título último. Com este último sentido entramos numa nova problemática, que já não é a problemática da evolução, mas o saber como deve comportar-se a espécie humana.
A grande diferença entre os homens e os animais é que estes são, de algum modo, normados pelo seu equipamento genético, enquanto o mesmo não acontece com os humanos. Como dizia Kant, a natureza deixou-nos à mercê dos seus equipamentos e disposições, e temos de ser nós a ssumir uma actividade estruturante de natureza normativa.

Jean-Pierre Changeaux - O aspecto genético, ou epigenético, na produção e na aquisição das regras morais, insisto, é essencial para a espécie humana.

Paul Ricouer - Para resumir a minha argumentação diria portanto: em primeiro lugar temos o problema da predisposição, em segundo lugar, a necessidade de introduzir o normativo, e em terceiro lugar a necessidade de colocar em sinergia a ordem do desejo e a ordem do normativo.

Jean-Pierre Changeaux - Já focámos amplamento o problema da predisposição. A necessidade de introduzir o normativo, isto é, de produzir regras que limitam o campo das condutas possíveis interpreta-se, em minha opinião, num quadro evolucionista que incorpora a evolução cultural. (...)A normatividade permite uma economia de escolha, facilitando a vida do grupo social. São um pronto-a-comportar-se-correcto. Em que medida estas predisposições neurais e comportamentais que participam na elaboração das regras morais vão buscar as suas origens a espécies animais que precederam o homem? É esta a questão que formulo.

Paul Ricouer - Procede portanto retrospectivamente, procurando origens para o nosso projecto humano. O projecto ético assenta, então, numa selecção operada entre as disposições herdadas dos nossos ascendentes. Mas, para ser eficaz, a ética necessita de algo mais que predisposições. Necessita de uma parte institucional e política.

Jean-Pierre Changeaux - Somos ao mesmo tempo seguidores e produtores de regras. Quero compreender como se destaca progressivamente a normatividade a partir das predisposições do cérebro do homem.

Paul Ricouer - Mas esta normatividade não é sustentada por nenhum progresso observado na natureza. Para que a normatividade se liberte, é preciso que ela própria se pressuponha, é uma noção auto-referencial.

Jean-Pierre Changeaux - Em minha opinião, ela não se pressupõe. Constrói-se numa perspectiva histórica com os nossos cérebros de homem capazes de, precisamente, auto-referência. Mas gostaria mais de voltar ao terceiro ponto da sua argumentação, a sinergia entre predisposições favoráveis e as normas. Como descobrir a concordância entre a ordem do desejo e a ordem do normativo?
O quadro evolucionista facilita consideravelmente a definição de níveis de complexidades. Fiz uma reflexão evolucionista e neurobiológica no sentido de distinguir vários níveis na exigência ética e no julgamento moral.

(continua...)


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segunda-feira, maio 17, 2004
 
Diálogos entre um neurobiólogo e um filósofo IV

Nas Origens da Moral


Jean-Pierre Changeux - As implicações da teoria da evolução natural no que respeita aos sistemas de crenças e de ética são imensas.
Afigura-se plausível que a evoluçãp genética extremamente rápida dos antepassados do homem tenha utilizado elementos da vida social, linguagem, condutas "morais, etc., que depois agiram em retorno sobre ela.

Paul Ricouer - Todas as questões referentes à disposição natural para a moralidade são questõers retrospectivas, procurando o normativo em causa para trás de si mesmo.


Jean-Pierre Changeux - Qual é o problema do olhar retrospectivo do biólogo? As hipóteses científicas estão submetidas a um constante veredicto dos factos e às críticas permanentes da comunidade científica (sempre sem piedade!). (...)
Ainda segundo Darwin os instintos estão na base da moral. A evolução moral substitui, assim a evolução biológica. Mesmo as conductas altruístas podem não ser contra natura. Podem ir no sentido da natureza.

Paul Ricouer - É, mais uma vez, retrospectivamente, partindo da moralidade constituida, que analisamos a moralidade.

Jean-Pierre Changeux - Certos comportamentos altruístas animais parecem indicar que a regra de ouro ética já existe neles de forma embrionária, sem formulação linguística.

Paul Ricouer - É sempre a partir de uma posição humana que interpretamos os comportamentos animais. Mais uma vez acredita-se no olhar retrospectivo. O sentido moral que encontramos na natureza depende do sentido que lhe queremos dar. Desligada do nosso questionamento moral, a natureza não vai em nenhum sentido.


Jean-Pierre Changeux - Este olhar retrospectivo parace-me indispensável em qualquer método científico. Importa reconhecer "o que é" antes de se formular a questão das origens.

As primeiras estruturas da moralidade


Jean-Pierre Changeux - O português António Damásio avançou com a hipótese de um mecanismo natural, a que chamou de marcador somático que consiste numa emoção agradável ou desagradável a quando da projecção interior das consequências esperadas da diversas opções possíveis. (...) Uma das estratégias da ética é adiar a satisfação de um desejo, em favor de um benefício futuro. As investigações de Damásio sugerem ainda que a avaliação implícita precede o raciocínio explícito -
e é lícito perguntar se não será este o caso a quando de tomadas de posição de alcance ético.

Paul Ricouer - Permito-me observar, nesta fase, que sabemos muito mais pela reflexão dos moralistas, pela literatura, pelo romance, do que pelas neurociências.
Há ainda o problema dos métodos de investigação usados pelas neurociências, que analisam doentes e casos patológicos, como lesões cerebrais. Canguilhem sugeriu que nestes casos não se trata de um défice mas de uma reconstrução, pelo que há que ter isso em conta.
O termo marcador somático é um termo híbrido que tanto significa interioridade psíquica como interioridade neuronal.

Da história biológica à história cultural: a valorização do indivíduo

Paul Ricouer - O problema fulcral da moralidade é o seguinte: é a partir de uma posição moral admitida que partimos à procura dos seus antecedentes biológicos.

Jean-Pierre Changeux - Da mesma forma que, por exemplo, a linguagem (ver artigo sobre Chomsky na Via da Verdade - 3ª Feira, 17 de Junho de 2003), o nosso cérebro teria capacidade de inovação ética, de selecção e de transmissão das normas da vida moral.

Paul Ricouer - A pluralidade e adiscórdia parece representar um dado insuparável da nossa condição humana. A história cultural não é um prolongamento da história biológica que, na opinião de Stephan Jay Gould, terminou há 100 000 anos. Como incorporar este fenómeno na sua perspectiva neuronal?

Jean-Pierre Changeux - Para isso há que desenvolver uma fisiologia da marca cultural.

in O que nos faz pensar? Jean-Pierre Changeux e Paul Ricouer, ed 70

(continua...)


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quarta-feira, maio 12, 2004
 
Pragmatismo - Hilary Putnam

No dia 11 deste mês esteve na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a convite da Professora Sofia Miguens, do Departamento de Filosofia desta faculdade, Hilary Putnam (lê-se Pótnam), Professor Emérito da Universidade de Harvard e, neste momento, Professor Visitante na nossa vizinha Universidade de Santiago de Compostela. Hilary Putnam está para a filosofia como Ronaldo ou Maradona estão para o futebol, pelo que não é de estranhar a grande afluência que a sua conferência teve (umas 30 pessoas, que em filosofia em Portugal, corresponde a um estádio cheio).

Putnam veio ao Porto falar de Pragmatismo, corrente filosófica da qual se tem aproximado e que engloba nomes como Peirce, William James e J. Dewey. Putnam destacou a posição única deste movimento em relação a outras três grandes correntes filosóficas: o naturalismo, a tradição aristotélica e o existencialismo. Falou ainda, embora sucintamente, de duas das suas propostas teóricas mais arrojadas em filosofia da mente e da linguagem: o funcionalismo e o externalismo semântico, respectivamente.
Sendo considerado por muitos um filósofo analítico, Hilary Putnam prefere, no entanto, afastar-se do rumo que esta corrente anglo-americana da filosofia tem tomado actualmente, ignorando sobranceiramente a cultura, as artes e a própria história da filosofia. Como se lê no folheto de apresentação da conferência: Putnam prefere a definição de Stanley Cavell, seu colega em Harvard: a filosofia é educação dos adultos, daquilo que num adulto participante numa cultura é ainda educável, aberto e que tem a ver com a sensibilidade à vida teórica.

Naturalismo - Introduzido pela primeira vez pelo filósofo americano J. Dewey, o termo naturalismo não tinha, então, a significação que tem hoje, materialismo, querendo antes designar uma filosofia anti-supernaturalista, ou seja, anti-metafísica (conforme se desenhava a metafísica da altura, demasiado idealista e abstraída da realidade concreta). Segundo a posição naturalista original, as características fundamentais do mundo são físicas e não psicológicas ou sociais, que são características supervenientes. Assim, um pensador que procure os princípios básicos do mundo deverá estudar física, como aliás o fizeram os grandes metafísicos de outrora (Descartes, Leibniz, Kant...). Hoje em dia, segundo Hilary Putnam, nada disso se passa, e é com assombro que se assiste à feudalização de alguns grupúsculos filósoficos que insistem em ignorar o discurso, os métodos e as descobertas cientificas.

Tradição Aristotélica - Para Aristóteles as activades perceptivas são realizações mentais de estados de matéria. Dewey seria, então, um aristotélico naturalizado, ou seja, um naturalista sem a "bagagem" metafísica do aristotelismo.
Segundo Putnam, os princípios físicos (os pretensos primeiros princípios dos naturalistas não servem para explicar os níveis de intelectualidade mais elevados. A mecânica quântica não serve para explicar a Crítica da Razão Pura de Kant. Para um pragmatista a realidade tem mais do que um nível explicativo, ou seja, a física não tem a última palavra sobre a classificaçâo do mundo. sobre a ética, por exemplo, a literatura e a arte têm muito mais a dizer do que a neurobiologia. Putnam cita neste sentido William James: "Sou um realista natural. Não existem verdades sem um interesse particular."
O aspecto anti-aristotélico do prgmatismo não é apenas a sua rejeição das essências, mas também a rejeição da ideia de uma origem à priori do conhecimento.

Existencialismo - A corrente existencialista que começou a ser esboçada por Nietzsche procura oferecer um diagnóstico e uma cura para a miséria da vida humana. Dependendo dos autores, esta cura é em Nietzsche a Vontade de Poder, a necessidade de se viver intensamente cada momento (Amor Fati), com Kierkegäard uma relação mais autêntica com Deus, e com Heidegger uma vida mais autêntica.
Para um pragmatista, o existencialismo é uma corrente filosófica que fica muito aquém daquilo que se propõe: resolver os problemas existenciais do homem. Qualquer leitor de Nietzsche (Nietzsche não será propriamente um autor da corrente existencialista, mas está sem dúvida alguma na sua origem), mesmo o mais avisado quanto ao sentido metafórico das suas obras, sabe que este não teve, de modo algum, em conta as consequências sociais daquilo que escreveu. A procura de uma conexão existencialista com os fundamentos terá conduzido Heidegger a uma filosofia política e a uma filosofia da história desastrosas. Já um pragmatista não quer para si o papel de profeta, recusando-se aceitar que existe apenas um problema para os homens e uma única solução. O existencialismo, diz-nos Putnam, não é um sem sentido, mas não responde às perguntas que coloca.

Qual deve ser então, para um pragmatista, o método da filosofia?
A filosofia deve, antes de tudo, acentar em factos. Os seus métodos devem derivar da experiência e não de uma qualquer dor de alma existencial subjectiva.
Hilary Putnam pareceu-me ser (embora não o tenha dito) contra a ideia de uma filosofia criadora, como preconizava Nietzsche ou Bergson. A filosofia deve partir do mundo, deve ser reactiva e não activa, para usar os termos nitzscheanos. A visão pragmatista da filosofia recusa qualquer primazia do teórico à priori favorecendo o experimentalismo, mas constatando que existem vários níveis explicativos, diversos sentidos. Segundo Putnam, onde o materialismo hodierno peca é em não compreender que a explicação não se dá nos níveis mais básicos (onde a experiência pode incidir) mas nos níveis mais elevados da realidade. É ao afirmar que não é possível reduzir a semântica (nível elevado) a estados físicos (nível baixo) que Putnam se afasta da doutrina Verificacionita (ver Via da Verdade - Sábado, Junho 14, 2003) típica dos pragmatistas. Para estes a experiência é o critério último de verdade. Ou seja, algo só tem significado quando pode ser experimentalmente verificado. Quando a experiência confirma a teoria há verdade, quando a experiência não é possível não há significado.

Quanto ao papel da filosofia, esta deve ser uma crítica da crítica, uma "educação para adultos". Não deve ignorar os problemas existenciais inerentes à condição humana, mas deve tratá-los de uma forma responsável


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terça-feira, maio 11, 2004
 
Porque é que existe algo em vez de nada? Um artigo de Thomas Nagel, uma dica ALD.


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segunda-feira, maio 10, 2004
 
Aquém e Além do Cérebro*

What is next for philosophy - Patricia Churchland

Patricia Churchland, Professora de Filosofia (Neurociência, Mente e Ciência) na Universidade da Califórnia, veio ao Porto falar das implicações éticas do progresso das neurociências: o problema do livre arbítrio, da livre escolha e da responsabilidade.

Segundo P.Churchland os dados científicos mais recentes descrevem os cérebros humanos como máquinas causais. Ou seja, que passam de um estado a outro motivados por razões antecedentes. Como é que esta evidência influencia as nossas considerações acerca do livre arbítrio, da livre escolha e da responsabilidade dos seres humanos?
Em face dos dados científicos que indicam que as nossas decisões e escolhas fazem parte de um processo causal (sinais sensoriais; memória e capacidade de aprendizagem; sistema de recompensas ? desejos; estados comportamentais, etc.), revelando a existência de uma preparação não consciente do agenciamento, como encarar o argumento que diz que para a nossa acção ser livre tem de ser não causada?
Segundo este argumento, se todo o agenciamento mental é causado não somos livres, ou seja, nunca estamos em controlo dos nossos actos.

Em primeiro lugar é preciso saber o que é que entendemos por ?livre escolha?.
Segundo P.Churchland, para que uma escolha seja livre não é necessário que não seja causada. Churchland não duvida que tudo o que fazemos ?vem de dentro?, tendo surgido no nosso cérebro por evolução através do método de recompensa/castigo. No entanto é contra qualquer tentativa de explicação metafísica para o problema do livre arbítrio e da responsabilidade. A resposta deve ser pragmática. A verdade (demonstrada cientificamente) é que o cérebro parece criar a ilusão de estar em controlo, como por exemplo, no caso de pacientes estimulados por via cortical sem consciência de que o seu ?livre arbítrio? está a ser manipulado. Em última análise, diz-nos P.Churchland, as nossas razões são representações de Estados Cerebrais e todas as regras e normas que seguimos saem do cérebro, são instanciações de funções cerebrais.
No entanto, os nossos comportamentos apesar de causados não são previsíveis. A possibilidade de se prever um comportamento pela análise de um determinado estado causal é irrisória, simplesmente porque as variáveis são imensas.
Assim, para P.Churchland, temos livre arbítrio porque no nível de consciência em que nos encontramos temos controlo sobre as nossas acções. O que aqui importa analisar é aquilo que muda de um cérebro que tem o controlo sobre as suas acções para um que não tem esse controlo.

Como definir estar em controlo? Para estar em controlo um cérebro tem de estar em estado de predição.Um cérebro está tanto mais em controlo quanto maior for a sua capacidade de realizar vaticínios a longo prazo. Considera-se que uma pessoa não está em controlo quando sofre de alguma doença do foro psicológico, como epilepsia, síndrome de Tourette, desordem maníaco-depressiva, mutações genéticas associadas a abusos na infância, etc. No entanto, avança P.Churchland, os conceitos que usamos actualmente podem ainda não estar à altura da explicação que procuramos. Para que a psicologia seja capaz de responder às questões fundamentais sobre a natureza do ?estar em controlo?, é necessária uma revolução conceptual, em micro e macro escala, que forje os conceitos necessários.

Conforme sugerem os estudos de António Damásio acerca do raciocínio, do agenciamento, da sabedoria e da consciência, existe uma explicação neural (física, portanto) para a natureza do ?estar? ou ?não estar? em controlo: situações neuro-químicas (ver capítulos 6, 7 e 8 de O Sentimento de Si de António Damásio); a importância do córtex frontal; a recente evolução da consciência neural através de mecanismos de recompensa castigo, etc. Este é, segundo A. Damásio, um processo dinâmico e cujas fronteiras são extremamente difusas difusas.

É aqui que P. Churchland coloca o seu desafio à filosofia que deverá trabalhar com a neurociência com o intuito de criar condições aos seres humanos para que estes mantenham e desenvolvam a sua capacidade de auto-controle.

* notas sobre o 5º Simpósio Aquém e Além do Cérebro, realizado de 31 de Março a 3 de Abril de 2004 pela Fundação Bial.





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quinta-feira, maio 06, 2004
 
Diálogos entre um neurobiólogo e um filósofo III

O espírito ou a matéria?


Jean-Pierre Changeux - Tanto a inspiração do poeta como a do cientista, ousaria mesmo dizer do filósofo, deve ser procurada no seu funcionamento cerebral, que inclui a experiência que tem do mundo, o saber que a humanidade adquiriu ao longo de milénios de história e a sabedoria dos homens de pensamento que viveram no nosso planeta. (...) Não há nada de inefável no trabalho criador do artista.

Paul Ricouer - É legítimo afirmar, a título programático, que a conexidade neuronal será um dia capaz de cobrir os comportamentos estruturados pela linguagem, pelos símbolos, pelas normas. (...) Mas nesse caso, que provaremos? Que uma actividade cerebral está subjacente a todos os fenómenos mentais? Mas essa é a hipótese de trabalho das ciências neuronais! A crítica que faria de novo ao seu projecto científico é que ele federa todas as disciplinas anexas sob o estandarte da neurobiologia, sem ter em conta a variedade dos referentes respectivos destas ciências, nem a dos seus programas científicos, em vez de confiar à interdisciplinaridade o trabalho de colocar em sinergia estas ciências, que podem lutar, cada uma delas, pela hegemonia em relação aos outros membros da constelação. (...) Digo apenas o seguinte: ou a referência a este neural não é pertinente para a compreensão das operações consideradas, ou não conhecemos absolutamente nada deste neural.

Jean-Pierre Changeux - Não devemos confundir desconhecido com irreconhecível. Para mim nada é irreconhecível. (...) Talvez os progressos das ciências do cérebro sejam tais que suscitam o receio de uma hegemonia.

in O que nos faz pensar? Jean-Pierre Changeux e Paul Ricouer, ed 70


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sábado, abril 24, 2004
 
Diálogos entre um neurobiólogo e um filósofo II.

O biológico e o normativo.


Jean-Pierre Changeux - A questão para a qual deve tender a nossa discussão equivale a examinar em que medida podemos enraizar o normativo na evolução biológica e na história cultural da humanidade. Poderemos elaborar uma "nova ética" que, como Darwin, propõe que as normas morais eleboradas pelo homem, e que se propagam pelas sociedade humanas, prolongam, alargam por meio da aprendizagem os "instintos sociais" de simpatia que têm origewm na evolução das espécies?

Paul Ricoeur - Aí reside, de facto, toda a questão.

in O que nos faz pensar? Jean-Pierre Changeux e Paul Ricouer, ed 70.


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quarta-feira, abril 21, 2004
 
Diálogos entre um neurobiólogo e um filósofo

O dualismo mente-corpo


Paul Ricouer - A minha tese é que os discursos defendidos por cada um dos lados (neurociência e filosofia) decorrem de duas perspectivas heterogéneas, isto é, não redutíveis uma à outra e não deriváveis uma da outra. Num discurso trata-se de neuóneos, de conexões neuronais, de sistema neuronal, no outro fala-se de conhecimento, de acção, de sentimento, isto é, de actos ou de estados caracterizados por intenções. motivações, valores (...) não vejo nenhuma passagem de uma ordem de discurso para outro.

in O que nos faz pensar? Jean-Pierre Changeux e Paul Ricouer, ed 70.


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segunda-feira, março 22, 2004
 
O problema mente-corpo: O principal problema da biologia

3 livros que tentam explicar a consciência.


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quinta-feira, março 18, 2004
 
Nagel e o problema mente-corpo

Na opinião de Thomas Nagel ainda não nos foi possível resolver o problema mente-corpo (como é que de sistemas físicos como o cérebro, o sistema nervoso, os neurónios, etc., surgem os estado mentais e conscientes, qualitativamente diferentes dos anteriores) pois ainda não possuímos os conceitos adequados para o fazer. Todavia há esperança.

o artigo de Nagel aqui


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terça-feira, março 16, 2004
 
Representações Conceptuais

Publicado no número especial (5/6) do Volume 18 da revista Language and Cognitive Processes intitulado Conceptual Representation, este artigo de Lawrence W. Barsalou trata do problema da natureza do nosso sistema conceptual, de como chegamos a formular os nossos conceitos e da relação entre as representações conceptuais e o sistema sensorio-motor. Como é geralmente aceite, são os conceitos que nos permitem conhecer o mundo que nos rodeia, possibilitando as faculdades cognitivas básicas como a memória, a linguagem e o pensamento. A conclusão final deste artigo é que são as simulações perceptuais que representam os conceitos no nosso sistema conceptual.

Conforme escrevem os editores convidados James A. Hampton e Helen E. Moss no artigo de introdução a este número especial, Barsalou ataca aqui a posição tradicional de alguns neuropsicólogos e psicólogos cognitivos que defendem que as representações conceptuais são qualitativamente diferentes daquelas que são processadas dentro do sistema perceptivo-motor. Ou seja, segundo este ponto de vista tradicionalista, os conceitos são representações simbólicas "amodais", abstraidas das suas bases modulares perceptivas.

O que Barsalou nos diz é que existe um formato representacional comum aos processos conceptuais e sensorio-motores, fazendo ambos parte da sua descrição de simulações situadas, que são "dinâmicas, contexto-dependentes e conduzidas por objectivos".



Simulação Situada no sistema conceptual humano

Lawrence W. Barsalou

- deste artigo foi traduzido apenas a introdução e a conclusão.

Depois de muito resumidamente analisar as actuais teorias do sistema conceptual – memória semântica, modelos exemplares, redes de alimentação conectivas (feed-forward connectionist nets) e a teoria da simulação situada - este artigo explora a proposta de que as simulações situadas se encontram no âmago desse sistema. Em defesa deste ponto de vista evocaremos algumas provas empíricas.
Falando de uma maneira geral, um sistema conceptual contém conhecimentos acerca do mundo. Uma propriedade fundamental deste conhecimento é a sua natureza categorial. Um sistema conceptual não é uma colecção de imagens holísticas do género das que são captadas por um gravador vídeo ou áudio. Um sistema conceptual é uma colecção de conhecimentos categoriais, onde cada categoria representada corresponde a um componente de experiência – e não a uma experiência holística total.
Sempre que a atenção selectiva se concentra persistentemente em algum componente (ou componentes) da experiência, desenvolve-se o conhecimento de uma determinada categoria. De cada vez que se presta atenção a um componente, a informação extraída integra-se na memória com a anterior informação relativa a esse mesmo componente. Quando, por exemplo, a atenção se foca num padrão de cor azul, a informação extraída é armazenada junto com as anteriores memórias de azul, produzindo desse modo conhecimento categorial para esse componente. Com o tempo uma miríade de componentes acumulam memórias de um modo similar, incluindo objectos, acontecimentos, locais, datas, estados introspectivos, relações, propriedades e por aí em diante.
Certamente que a aprendizagem que produz o conhecimento categorial ocorre dentro de uma arquitectura limitada biologicamente e que, como tal, tem tendência a aprender algumas categorias mais facilmente do que outras. Além disso, algumas representações categoriais preliminares já existem antes mesmo do processo de aprendizagem começar. As contribuições da aprendizagem e da biologia não receberão aqui mais atenção. No entanto, é importante sublinhar que a interacção entre as duas é crucial para o desenvolvimento dos sistemas conceptuais.

O conhecimento categorial dos componentes da experiência desempenha um papel fundamental no sistema cognitivo, proporcionando suporte representacional para todos os processos cognitivos. Veja por exemplo o processamento online. À medida que as pessoas interagem com o ambiente e procuram atingir objectivos, o sistema conceptual actua de três formas. Em primeiro lugar, apoia a percepção, prevendo as entidades e os acontecimentos com probabilidades de serem percepcionados numa determinada cena, acelerando dessa forma o seu processamento. O sistema conceptual também ajuda a idealizar percepções através da antecipação, preenchimento de percepções e outros tipos de inferências perceptuais. Em segundo lugar, o sistema conceptual apoia a categorização. À medida que as entidades e os acontecimentos são apreendidos, o sistema conceptual atribui-lhes determinadas categorias. Em terceiro lugar, depois de lhes ser atribuída uma categoria, o conhecimento categorial possibilita que se façam valiosas inferências que constituem conhecimentos acerca do mundo. Em vez de começarem do zero no seu relacionamento com alguma coisa, os agentes beneficiam do conhecimento de categorias precedentes.
Para além de ser crucial para o processamento online do ambiente, o sistema conceptual é também crucial para o processamento offline na memória, na linguagem e no pensamento. Em cada uma destas tarefas é frequentemente muito importante que se processe uma situação não-presente, suprimindo-se a percepção do ambiente actual por forma facilitar o processamento da situação imaginada. Na memória é reconstruída uma situação passada. Na linguagem é representada uma situação passada ou futura, ou até mesmo uma situação impossível. No pensamento é analisada uma situação passada, futura ou irreal para ajudar uma tomada de decisão, a resolução de um problema, um planeamento, ou um raciocínio. Nestes três tipos de processamento offline o sistema conceptual desempenha um papel crucial. Na memória o sistema conceptual participa na codificação, na estrutura organizacional armazenada e no processo de reconstrução de inferências. Na linguagem o sistema conceptual contribui para os significados das palavras, das frases e dos textos, e para as inferências que os ultrapassam. No pensamento o sistema conceptual fornece representações dos objectos e dos acontecimentos que ocupam o raciocínio.
Finalmente, o sistema conceptual desempenha um terceiro papel crucial no processo de cognição. Para além de apoiar o processamento online e offline apoia também a construção produtiva de novos conceitos. O sistema conceptual não está limitado a representar apenas as entidades e os acontecimentos que o agente experimenta no mundo. Dado que o sistema conceptual estabelece conhecimento categorial acerca de componentes da experiência, pode também combinar esses componentes de novas maneiras, representando assim coisas nunca antes encontradas. Deste modo um agente pode combinar os diferentes conhecimentos categoriais às riscas e QUEDA DE ÁGUA de forma a representar a nova categoria QUEDA DE ÁGUA ÀS RISCAS. Devido a esta capacidade o sistema conceptual pode categorizar novas entidades durante o processamento online (por ex. uma queda de água às riscas), e pode representar estas novas entidades offline na linguagem e no pensamento. Este importante processo permite aos seres humanos imaginar situações não-presentes, aumentando assim as suas hipóteses de sobrevivência no panorama evolutivo.

- segue-se uma enumeração dos restantes tópicos do artigo até à conclusão.

Teorias do Sistema Conceptual
Memória semântica | Modelos exemplares | Redes de alimentação conectivas | Teoria da simulação situada

Provas a Favor da Teoria da Simulação Situada
Provas a favor de um sistema conceptual não-modular modal | Provas a favor das simulações situadas | Provas a favor das simulações dinâmicas | Provas a favor da organização em torno da relação acção – ambiente

Conclusões

Do trabalho aqui analisado seguem-se três conclusões gerais.
A primeira, de que o sistema conceptual desenvolve-se com o intuito de servir acções localizadas. No nível de organização mais amplo ergue-se uma importante classe de categorias que tem por objectivo tornar mais eficiente a relação acção – ambiente. Ao perseguir um objectivo, as categorias derivadas do objectivo fornecem mapeamentos a partir dos papéis que desempenham nas sequências de acção solicitadas pelo ambiente. Ao nível das categorias individuais, os simuladores produzem conceptualizações situadas que apoiam a consecução do objectivo. Cada conceptualização é um pacote de inferências que especifica propriedades contextualmente relevantes da categoria em causa, informações relativas a um provável cenário contextual, possíveis comportamentos a tomar e estados de introspecção que poderão surgir. Juntas, estas inferências produzem a experiência de “estar lá”, preparando o sujeito para uma determinada acção num determinado contexto.

A segunda conclusão diz-nos que estas conceptualizações situadas são distribuídas via simulações multi-modais. Enquanto que as inferências acerca dos objectos são distribuídas via sistemas sensoriais, as inferências acerca das acções são distribuídas via sistemas motor e sensoriomotor. Do mesmo modo, as inferências acerca dos estado introspectivos são distribuídas pela área límbica e pela área frontal que processam a emoção e o pensamento. Em vez de surgirem num sistema conceptual modular e amodal, estas representações surgem como simulações ou reconstituições em áreas do cérebro com funções específicas. Como resultado disso, cada tipo de inferência é representada numa linguagem de representação diferente.

A terceira conclusão diz-nos que um conceito é um sistema dinâmico. Um determinado simulador pode construir um número infinitamente grande de simulações específicas que representem a sua respectiva categoria. Em vez de ser uma representação fixa, um conceito é uma habilidade para adaptar representações às limitações das acções particulares. Como uma categoria pode adquirir diferentes formas, ser encontrada numa enorme variedade de cenários e servir muitos objectivos, uma representação fixa nunca seria a solução ideal. Uma só representação nunca conseguiria atender tão bem a todas estas diferentes situações. A melhor solução é mesmo ter um simulador que faça por medida conceptualizações para cada situação particular.

O nosso ponto de vista acerca do sistema conceptual afecta o modo como pensamos o resto do processo cognitivo. É muito difícil, se não mesmo impossível, pensar o sistema cognitivo sem nos comprometermos com uma teoria dos conceitos em particular. Como vimos no início, as representações no sistema conceptual subjazem todas as formas de actividade cognitiva, incluindo a percepção, a memória imediata, a memória a longo prazo, a linguagem e o pensamento.
O nosso ponto de vista acerca do sistema conceptual influencia as nossas teorias sobre todas estas actividades. Encarar as representações conceptuais como simulações permite-nos uma nova abordagem sobre processos cognitivos básicos. Como o demonstram investigações recentes, ter em consideração a possibilidade da simulação estimula novas hipóteses que a investigação futura pode explorar. Na pior das hipóteses, a teoria das situações simuladas tem a vantagem de levar as pessoas a pesquisar e a pensar sobre a natureza do sistema conceptual humano, à medida que este campo evolui na direcção de teorias cada vez mais sofisticadas.

Lawrence W. Barsalou
Tradução de Tomás Magalhães Carneiro







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segunda-feira, março 15, 2004
 
Origem da Tragédia
de F. Nietzsche, ed Guimarães Editores.

Nesta sua primeira obra Nietzsche faz uma hermenêutica do nascimento, morte e renascimento (com o espírito alemão) da tragédia grega - metáfora, segundo a minha leitura, do espírito humano.

Ainda com um certo "cheiro" à dialéctica de Hegel, N. apresenta aqui a sua distinção entre o espírito apolínio - frio e racional, representado por Eurípedes e Sócrates - e o espírito dionisíaco - passional e vital, representado por Aristófanes e Wagner.

Segundo N., o homem ocidental racional (Apólo) vive, desde Sócrates, "castrado" do seu elemento vital (Dionísio), que importa urgentemente ressuscitar.

O homem alemão contemporâneo de N. representa essa síntese Apólo/Dionísio e a obra de Wagner a manifestação maior dessa síntese.

O seu valor enquanto filósofo é inquestionável. N. lança um ataque à razão (à filosofia, portanto) ocidental e à sua arrogante pretensão de verdade. Essa verdade, para N., nunca será alcançada enquanto o homem racional continuar a ignorar os seus valores vitais, instintivos e emocionais. Dionisíacos, portanto.

No entanto, julgo que não foi a filosofia que mais ficou a ganhar com as obras de Nietzsche, mas antes a literatura e a arte em geral. N. escreve com ganas de vida, completamente possuido pelo espírito dionisíaco e isso nota-se pelo poder que emana de cada página do livro. Muito forte!

Imagino que muito tenha ficado irremediavelmente "lost in translation", mas isso é o preço que tenho de pagar por ter chumbado sucessivamente a alemão.

Tomás


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sábado, março 13, 2004
 
Em 7 "Cartas sobre o Aborto" publicadas na Revista Crítica entre 2 e 8 de Março, Pedro Madeira mostrou como é que deve ser feito o debate sobre questões éticas sensíveis como o aborto: filosóficamente.
Ficam aqui as 3 últimas cartas do argumento do Pedro (as 4 primeiras tratam de expôr "Alguns Maus Argumentos" normalmente usados pelos defensores e opositores do aborto) do qual podemos avançar desde já a conclusão:
o aborto deve ser legalizado até às vinte e cinco semanas. Penso que o melhor a fazer é simplesmente legalizar o aborto sem recorrer a um novo referendo.

Aborto: Os dois principais argumentos contra o aborto (5)


Como prometido, digo hoje qual é a minha posição em relação à legalização do aborto. Por razões que passarei a explicar, sou a favor.

De um modo geral, podemos dizer que há basicamente dois tipos de argumentos na bibliografia de bioética que procuram mostrar que o o feto tem o direito à vida, pelo que o aborto é imoral: o argumento da potencialidade, e aquilo a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos". A parte negativa da minha argumentação será a de tentar mostrar que ambos os argumentos são maus — é o que farei hoje. Amanhã, direi qual é a altura a partir da qual penso que devemos considerar que o feto tem o direito à vida e explicarei porque é que acho que todos os outros critérios estão errados. Essa será a parte positiva da minha argumentação.

Os argumentos que fazem uso da potencialidade geralmente têm a seguinte estrutura: o feto é, em potência, um ser humano; todos os seres humanos, quer sejam apenas seres humanos em potência ou não, têm o direito à vida; logo, o feto tem o direito à vida. Este é um mau argumento porque foge à questão. Aquilo que está em disputa é a segunda premissa: não é, por isso, permissível incluí-la num argumento. E é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas. Poderá ser objectado que estou simplesmente a fugir à questão: a analogia não funciona — o feto tem o direito à vida desde a concepção, mas eu só adquirirei o estatuto de Comandante Supremo das Forças Armadas caso venha a ser eleito Presidente da República. O problema com esta objecção é que foge, ela própria, à questão! Se estivéssemos desde logo a partir do princípio de que o feto tem o direito à vida desde a concepção, então para que é que precisaríamos de invocar o estatuto de potencialidade do feto?

Aquele a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos" faz o percurso inverso. Primeiro, nota-se que a criança, quando nasce, tem o direito à vida. Depois, acrescenta-se que não há grande diferença entre a criança dois minutos antes de nascer e agora, que acabou de nascer. Isso significa, certamente, que tinha o mesmo direito à vida dois minutos antes de nascer. E, se a coisa é assim, então certamente também teria o direito à vida quatro minutos antes de nascer. E por aí fora até ao momento da concepção. (A concepção não é um processo instantâneo, como alguns parecem pensar; já expliquei isto na segunda carta, e aprofundarei amanhã.) Este argumento é falacioso. Para ver que é, basta pensar no seguinte argumento análogo, que é claramente falacioso:

O Jorge não é careca; o Zé tem menos um cabelo na cabeca do que o Jorge; logo, o Zé também não é careca. O Eduardo tem menos um cabelo na cabeça do que o Zé; logo, o Eduardo também não é careca. E, como a diferença de um cabelo não parece ser suficente para delimitar a fronteira entre os carecas e os não carecas, chegamos ao caso do Manuel, que não tem qualquer cabelo na cabeça. Para sermos consistentes, devemos dizer que o Manuel também não é careca, o que é claramente falso.

Em ambos os casos, a falácia é a mesma. O facto de haver casos de fronteira não significa que não haja casos em que seja fácil dar uma solução. O facto de haver pessoas acerca das quais não saberíamos bem dizer se são ou não carecas não significa que não haja pessoas que são decididamente carecas ou decididamente não carecas. Do mesmo modo, do facto de que um recém-nascido tem o direito à vida não se segue que um feto de dois meses tem o direito à vida.

Amanhã, passarei em revista os principais critérios propostos na bibliografia para explicar a partir de que altura é que o feto tem o direito à vida e direi qual me parece o mais adequado.

Aborto: Direito à vida a partir de quando? (6)

1. Sobre o defensor da legalização do aborto recai o fardo de explicar em que altura o feto passa a ter o direito à vida, dado que temos de aceitar que tanto um ser humano adulto como uma crianca recém-nascida têm o direito à vida. Há varios critérios propostos na bibliografia, sendo que os seguintes são os mais comuns: concepção; implantação; forma humana; aceleração; actividade cerebral inicial; actividade organizada do córtex cerebral; viabilidade. Sou a favor do critério da actividade organizada do córtex cerebral. Vou rapidamente passar em revista todas as posições e explicar porque é que esta posição parece a correcta. Há ainda outra posição: o gradualismo. De acordo com o gradualismo, o feto vai progressivamente adquirindo direitos ao longo do tempo. Tanto quanto pude perceber, o gradualismo não recebe grande atenção na bibliografia de bioética. Direi por que penso que isto sucede mais abaixo. Olhemos, então, para os vários critérios que têm sido propostos na bibliografia de bioética para decidir a partir de que altura é que o feto começa a ter o direito à vida.

Concepção

Como já tive oportunidade de mencionar noutra carta, muitas pessoas parecem pensar que há um momento concreto em que se dá a concepção; mas tal é falso. A fertilização é um processo gradual que demora cerca de 22 horas. Primeiro, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando a cauda do lado de fora. Nas horas seguintes, o espermatozóide e o óvulo são, ainda, duas coisas distintas, embora o espermatozóide já esteja dentro do óvulo. Só ao fim das ditas 22 horas é que já temos um único objecto: o zigoto. Mas vamos fingir que não há esta dificuldade: vamos fingir que há um momento concreto em que se dá a concepção. Ainda assim, a concepção não poderia marcar o momento em que o feto adquire o direito à vida. Presumivelmente, um bebé recém-nascido e um ser humano adulto têm algo em comum que lhes garamte a ambos o direito à vida. O que é que o zigoto teria em comum com um bébé recém-nascido e com um ser humano adulto que bastaria para lhe atribuirmos, igualmente, o direito à vida? Não conheco qualquer resposta convincente. O opositor do aborto que favorece o critério da concepção geralmente tenta usar o argumento da potencialidade para mostrar que o zigoto tem o direito à vida. E esse argumento, como já vimos, é muito fraco.

Implantação

A implantação é a altura em que aquilo que virá a ser o feto se "agarra" à parede do útero. Isto geralmente acontece seis a oito dias após a fertilização. É facil ver que a implantação não pode ser o critério correcto. O que é que não existe, no quinto dia, que passa a existir no sexto? Aparentemente, nada. Ocorrem alterações hormonais no corpo da mulher, mas não é claro que relevância moral isto possa ter.

Forma humana

O feto comeca adquirir forma humana por volta das seis a oito semanas. Até essa altura, podia parecer apenas "um amontoado de células", como os defensores da legalização costumam dizer, agressivamente. Poderá ser o facto de que o feto adquire forma humana que lhe garante o direito à vida? Não. Se uma avestruz passasse pelas mãos de um cirurgião talentoso e adquirisse forma humana, acha mesmo que adquiriria, só por isso, o direito à vida? Não — se já não o tinha antes, não era agora que ia passar a tê-lo.

Aceleração ("quickening")

Normalmente, a mãe começa a aperceber-se dos movimentos do feto por volta das 16/17 semanas após a fertilização. Há pessoas que defendem que é aqui que o feto comeca a ter o direito à vida porque é precisamente na altura em que a mãe sente o feto "a dar pontapés" que se cria uma empatia especial entre ela e o feto. Este também é um mau argumento. O facto de um ser ter ou não o direito à vida não pode estar dependente de termos ou não empatia para com ele (ou ela). Se não podemos dizer que o feto começa a ter o direito à vida quando começa a mexer-se, então também não podemos dizer que começa a ter o direito à vida quando a mãe se apercebe, pela primeira vez, desse movimento.

Actividade cerebral inicial

Na maior parte dos casos, o feto comeca a revelar indícios de actividade cerebral entre as 6 e as 10 semanas. É importante especificar o que queremos dizer quando falamos em actividade cerebral. Entre as 6 e as 10 semanas, o que comeca a haver é actividade eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro. Mas isto, por si só, é um dado desinteressante. Há actividade eléctrica em todas as células do corpo humano. O facto de haver actividade eléctrica naquilo que virá a ser o cérebro não significa que ali se esteja a passar algo de moralmente relevante. Não tenho dúvida de que o desenvolvimento do cérebro está relacionado com a aquisição do direito à vida por parte do feto — mas o tipo de actividade cerebral registada a partir das 6/10 semanas não é suficiente para que tal suceda. Nessa altura, a única parte do cérebro que está mais ou menos desenvolvida é a que se ocupa de funções básicas, como o ritmo cardíaco e a respiração.

Actividade organizada do córtex cerebral

De acordo com uma estimativa conservadora, o feto comeca a ter actividade organizada do córtex cerebral algures entre as 25 semanas e as 32 semanas. (Uma estimativa menos conservadora diria que só às 30 semanas essa actividade tem início.) É a partir desta altura que as ligações sinápticas entre células cerebrais individuais começam a estabelecer-se — até esta altura, essas células eram pequenas ilhas, por assim dizer. Começa a ser possível captar as ondas cerebrais do feto através de electro-encefalogramas. Argumentavelmente, é sensivelmente a partir desta altura que o feto começa a pensar e a ter consciência, algo que tanto um ser humano adulto como um bébé recém-nascido têm (embora em graus diferentes, obviamente). É por isso que penso ser nesta altura que o feto adquire o direito à vida. Uma objecção perspicaz a este critério é a de que adoptá-lo parece implicar que as pessoas em coma não têm o direito à vida. Uma resposta curta a esta objecção seria a seguinte: Quem tiver lido a quarta carta lembrar-se-á de que estabeleci uma distinção útil entre potencialidade no sentido forte, e potencialidade no sentido fraco. Essa mesma distinção volta a ser pertinente agora. Tanto o feto antes das 25 semanas como o comatoso são potencialmente seres conscientes. No entanto, são-no em sentidos diferentes. O comatoso é potencialmente um ser consciente num sentido mais forte do que aquele em que o feto é potencialmente um ser consciente. O comatoso é como uma pessoa que sabe francês, embora não esteja a falar francês neste momento, e o feto é como uma pessoa que ainda não aprendeu a falar francês. Como a situação do feto antes das 25 semanas e a do comatoso diferem num aspecto relevante (são ambos potencialmente conscientes, mas em sentidos diferentes), o argumento por analogia não colhe.

Viabilidade

Diz-se que um feto se torna viável quando pode sobreviver fora da barriga da mãe (ainda que com recurso a cuidados médicos), o que acontecerá algures entre as 20 e as 23 semanas. Argumenta-se por vezes que a viabilidade do feto marca a altura em que o feto adquire o direito à vida, dado que a partir desta altura o feto já não necessita da mãe. Este critério sofre de um problema óbvio: a altura da viabilidade do feto é determinada pelo estado da tecnologia existente. Isso torna arbitrária a adopção do critério da viabilidade. No futuro, a viabilidade pode passar a ser mais cedo — mas isso não significa que o feto adquira o direito à vida mais cedo.

Uma perspectiva diferente: o gradualismo

Há ainda uma última posição que, tanto quanto me pude aperceber, não é muito discutida na bibliografia de bioética, mas que aparece, de vez em quando, em debates públicos: o gradualismo. O gradualismo é a posição de que o direito à vida é uma questão de grau, e que o feto vai progressivamente adquirindo maior direito à vida à medida que a gravidez avança no tempo. Há um sentido trivial em que concordo com o gradualismo: a partir da vigésima quinta semana, o feto vai adquirindo progressivamente maior direito à vida, e, em termos morais, matar um feto com 30 semanas não é, certamente, a mesma coisa que matar um feto com 40 semanas. No entanto, não é possível usar o gradualismo para argumentar a favor da posição de que o zigoto tem o direito à vida. Ao usar esta linha de argumentação, uma pessoa estaria a cair, subtilmente, no erro de usar o chamado "argumento dos dois minutos", que, como já vimos, é falacioso.

2. A minha posição não é facilmente rotulável. Dado que acho que há uma altura a partir da qual é imoral abortar, não me considero "pró-escolha". E, dado que acho que é moralmente permissível abortar até certa altura, também não me considero "pró-vida". Se pensarmos que temos de ser ou pró-vida ou pró-escolha, então ficamos perante um grande dilema. Se somos pró-escolha, ficamos com a dificuldade de explicar porque é que o infanticídio não é permissível, dado que seria permissível abortar no nono mês. Se somos pró-vida, ficamos sem nenhuma história para contar para explicar porque é que o zigoto tem o direito à vida — só podemos bater na mesa e repetir que o aborto vai contra a dignidade da pessoa humana. Ao apoiar um critério que me parece convincente, escapo ao dilema.

3. Dado que há inumeros critérios possíveis para definir a partir de que altura o feto tem o direito à vida, os opositores da legalização costumam reclamar que, se nem os defensores da legalização estão de acordo acerca do critério a usar, segue-se que devemos ser cautelosos e tratar o feto como se tivesse o direito à vida desde a concepção. Esta objecção falha o alvo. É verdade, sim, que há desacordo entre os defensores da legalização acerca de qual o critério a usar. Mas a única coisa que daqui se segue é que não se pode recorrer a argumentos de autoridade para defender um dado critério. É uma regra elementar da argumentação que não é permissível usar um argumento de autoridade para tentar estabelecer uma dada conclusão quando as autoridades não estão de acordo entre si. No entanto, daqui não se segue, de modo algum, que um critério particular seja tão bom como qualquer outro. E, de facto, acabei de falar dos critérios mais debatidos na bibliografia e, como se pôde ver, só um deles parece defensável. Seja como for, amanhã olharei para este argumento da cautela em maior pormenor e explicarei por que acho que não colhe.


Aborto: Será melhor não legalizar por uma questão de cautela? (7)


1. Ao longo da última semana, tenho vindo a discutir vários argumentos a favor e contra o aborto. Hoje, porém, vou analisar um argumento especial que os opositores da legalização costumam usar em desespero de causa. Este argumento não procura estabelecer que o aborto é imoral, mas apenas que o aborto não deve ser legalizado porque o debate acerca da moralidade ou imoralidade do aborto é inconclusivo.

A estratégia argumentativa é a seguinte: Se o aborto é moralmente permissível, então ao tomar a atitude de não legalizar o aborto estaremos apenas a dificultar desnecessariamente a vida às mulheres que pretendiam abortar ("dificultar a vida" é um eufemismo, obviamente). Por outro lado, caso o aborto seja imoral, estaremos a autorizar um assassínio em larga escala. O problema com este argumento é o de que toma a seguinte forma: "podemos achar que os argumentos contra a permissibilidade moral da prática X não são convincentes; no entanto, como as consequências morais de X ser imoral seriam terríveis, mais vale abstermo-nos de realizar X". Este é um princípio de decisão a que é comum chamar "princípio de eliminação do risco". A ideia é simples: imagine que o leitor tem várias opções disponíveis. Uma delas tem a possibilidade ínfima de causar um desastre. Por isso, o leitor deve abster-se de escolher esta opção. Não é dificil perceber porque é que não devemos empregar este princípio. Imagine que o leitor é presidente de uma empresa que vende champôs ao domicílio. Um dos seus vendedores vem ter consigo, com ar solene, mas cauteloso, e diz-lhe que acha que a empresa devia deixar de vender o champô "Charmoso". Perplexo com este comentário, dado que o champô Charmoso é, precisamente, o champô mais popular junto dos consumidores, pergunta-lhe, inquieto, quais as suas razões. O vendedor diz-lhe que duas pessoas foram atropeladas, no mesmo dia, logo após usar o dito champô, pelo que a empresa corre o risco de ser processada por vender um champô que dá azar aos utilizadores.

Como é óbvio, este é um argumento nada convincente. A coisa certa a fazer é, sem dúvida, continuar a vender o champô Charmoso. É extremamente escassa a probabilidade de que seja um dia aprovada uma lei (com efeitos retroactivos, ainda por cima) que permita processar uma empresa por vender produtos azarentos. E a probabilidade de que o champo Charmoso seja mesmo azarento é mais escassa ainda. O problema com o princípio de eliminação do risco está agora à vista: o princípio pede-nos que negligenciemos a qualidade dos argumentos apresentados. Se houver um argumento qualquer a defender que X é uma consequência possível de fazer Y e que X é uma coisa terrível, então, por pior que esse argumento seja, o melhor é mesmo não fazer Y. Este é um princípio que não parece lá grande ideia adoptar. O princípio só entra em cena se houver um empate entre os argumentos a favor da posição de que X é uma coisa terrível e os argumentos a favor da posição de que X não é uma coisa terrível. Quando não se mostrou que há esse empate, é falacioso invocar o princípio de eliminação do risco.

O leitor poderá achar, contudo, que usei o exemplo de uma decisão comercial, ao passo que o princípio se aplica, fundamentalmente, a questões éticas. Esta não é uma crítica justa, dado que a objecção que apresentei contra o argumento é igualmente pertinente quer tentemos aplicá-lo na vida de uma empresa, quer na nossa vida ética quotidiana. Um princípio de decisão aplica-se, supostamente, a todas as decisões que temos de tomar no dia-a-dia, quer estejam relacionadas com a nossa vida moral ou não. Mas vou, ainda assim, tomar esta preocupação em linha de conta e apresentar um exemplo de uma questão ética em que o princípio poderia ser empregue.

Imagine, então, que aparecia alguém a dizer que as árvores têm direitos. Nesse caso, ele poderia apelar ao princípio de eliminação do risco e dizer: "vocês podem achar que os meus argumentos não são muito convincentes; no entanto, pensem nas terríveis consequências morais de eu estar certo. Estaríamos a autorizar anualmente o assassínio de milhões de arvores inocentes pelo mundo inteiro." Se aceitássemos o princípio de eliminação do risco, então seríamos forçados a deixar de deitar abaixo árvores. Mas não há qualquer razão para fazermos isso, dado que os argumentos a favor da posição de que as árvores tem direitos não são convincentes. As pessoas podem reclamar que o caso das árvores não é semelhante ao do feto, pelo que a analogia não funciona. Não é semelhante? Se o leitor pensa isso, é porque está implicitamente a partir do princípio de que o aborto é imoral. No entanto, como já tive oportunidade de mostrar, não há um empate entre os argumentos a favor da posição de que o aborto é uma tragédia moral e os argumentos a favor da posição de que o aborto não é uma tragédia moral. Pelo contrário — tanto os argumentos frequentemente usados em debates públicos como os principais argumentos usados na bibliografia de bioética parecem maus. E, embora alguns argumentos apresentados a favor da legalização do aborto sejam maus, há outros que parecem decisivos. Os argumentos não são como maçãs num cabaz: a "podridão" — passe a expressão — de uns não afecta a qualidade (boa ou má) dos outros. (O facto de muitos dos argumentos a favor de uma dada posição serem nitidamente maus pode provocar um preconceito espontâneo contra uma posição, mas essa é outra história.) Concluindo: é falacioso estar a usar o princípio da eliminação do risco para argumentar que, por uma questão de precaução, o aborto não deve ser legalizado, dado que não há um empate entre os argumentos contra e a favor.

2. A quem queira ter uma posição informada acerca do assunto, aconselho dois livros. Em primeiro lugar, Ethics in practice: an anthology, organizado por Hugh LaFollette, tem uma secção acerca do aborto que contém quatro artigos, sendo que dois deles são já classicos: "A Defense of Abortion", de J. J. Thomson, e "An Argument that Abortion is Wrong", de Don Marquis. É um escândalo que um livro destes ainda não esteja publicado em Portugal. Não admira que, em termos de divulgação da bioética, ainda estejamos na idade da pedra. Em segundo lugar, A Defense of Abortion, de David Boonin, é a defesa mais convincente (e exaustiva) do aborto que já alguma vez li, e a minha discussão do aborto foi muito influenciada pelo livro. Como foi publicado recentemente (2003), achei por bem retirar daqui todos os dados científicos de que necessitei. Alguns dos argumentos que discuti nesta série de cartas não aparecem no livro porque são demasiados maus. Achei por bem discuti-los, ainda assim, porque vêm muito à baila em debates públicos em Portugal.

3. Se o leitor concorda que o aborto deve ser legalizado, então está igualmente ciente de que enfrentamos agora um grave problema político: o referendo foi realizado há apenas 5 ou 6 anos atrás e a resposta foi "não". Se fizermos outro referendo agora, estaremos a desautorizar os votantes, a tratá-los como crianças. Se, por outro lado, o aborto desta vez for legalizado sem recorrer a um referendo, então não se percebe para que se fez o primeiro referendo: bastava ter legalizado logo e pronto. Como as coisas estão é que não podem continuar: o aborto deve ser legalizado até às vinte e cinco semanas. Penso que o melhor a fazer é simplesmente legalizar o aborto sem recorrer a um novo referendo. Nesta altura, alguém poderá objectar que um referendo acerca da legalização do aborto é sempre necessário, tal como um referendo acerca da entrada de um qualquer país na União Europeia é sempre necessário. Discordo. Talvez faça sentido repetir-se um referendo acerca da entrada de um dado país na União Europeia porque as condições de entrada mudam ao longo do tempo. Os cidadãos de um país podem ver que as vantagens de entrar para a União aumentaram, e nesse caso poderão votar a favor da entrada do país na União. No entanto, o caso moral a favor e contra o aborto não mudará substancialmente ao longo dos anos. É por isso que esta é uma decisão que não deve ser deixada aos votantes: a legalização do aborto não deve passar pelo referendo. Seja como for, isso agora é um problema para os politicos.

Pedro Madeira
pedro.madeira@portugalmail.pt

Nota: Estas cartas foram enviadas para publicação ao jornal Público, que até hoje não as publicou.


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quinta-feira, março 11, 2004
 
Aborto
Mary Anne Warren

1. Introdução

Será que as mulheres têm o direito de interromper uma gravidez não desejada? Ou estará o estado habilitado (senão mesmo eticamente obrigado) a proibir o aborto intencional? Deverão alguns abortos ser permitidos enquanto outros não? O estatuto legal do aborto decorre directamente do seu estatuto moral? Ou deverá o aborto ser legalizado, mesmo que seja algumas vezes, ou mesmo sempre, moralmente errado?

Estas questões suscitaram intensos debates ao longo das duas últimas décadas. Curiosamente, em grande parte do mundo industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma série de leis anti-aborto foram promulgadas durante a segunda metade de século XIX. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto realçavam os perigos clínicos do aborto. Por vezes também se argumentava que os fetos são seres humanos a partir do momento da concepção e, como tal, o aborto intencional seria uma forma de homicídio. Agora que os avanços médicos tornaram os abortos, quando correctamente efectuados, mais seguros que os partos, o argumento clínico perdeu toda a força que alguma vez possa ter tido. Consequentemente, o ponto central dos argumentos anti-aborto mudou-se da segurança física das mulheres para o valor moral da vida do feto.

Quem defende o direito de as mulheres escolherem o aborto respondeu de diversas formas ao argumento anti-aborto. Examinarei três linhas de argumentação da perspectiva do direito de escolha: 1) que o aborto deve ser permitido pois a proibição do aborto leva a consequências altamente indesejáveis; 2) que as mulheres têm o direito moral de escolher o aborto; e 3) que os fetos ainda não são pessoas e, como tal, ainda não têm um direito substancial à vida.

2. Argumentos consequencialistas a favor do aborto

Se avaliarmos a moralidade das acções pelas suas consequências, podemos construir um forte argumento contra a proibição do aborto. Ao longo dos tempos as mulheres têm vindo a pagar um terrível preço pela ausência de métodos contraceptivos e abortivos seguros e legais. Obrigadas a dar à luz muitos filhos a intervalos excessivamente curtos, as mulheres eram frequentemente muito fracas e morriam jovens — um destino comum na maioria das sociedades anteriores ao século XX e, ainda hoje, em grande parte do Terceiro Mundo. A maternidade involuntária agrava a pobreza, aumenta as taxas de mortalidade nos bebés e nas crianças e obriga as famílias e os estados a grandes esforços económicos.

O aperfeiçoamento dos métodos de contracepção veio aliviar de alguma forma estes problemas. No entanto, nenhuma forma de contracepção é ainda 100% eficaz. Além disso, muitas mulheres não têm acesso a qualquer tipo de contracepção, seja por não poderem pagar, ou por não se encontrar disponível no sítio onde vivem ou por não estar disponível a menores sem a autorização dos pais. Em quase todo o mundo, trabalhar por um salário tornou-se uma necessidade para muitas mulheres, tanto solteiras como casadas. As mulheres que têm de ganhar o seu sustento sentem a necessidade de controlar a sua fertilidade. Sem esse controlo é-lhes praticamente impossível obter o grau de educação necessário para um emprego digno, ou é-lhes impossível combinar as responsabilidades da maternidade com as do seu emprego. Isto é uma verdade tanto para as sociedades socialistas como para as capitalistas, pois em ambos os sistemas económicos as mulheres têm de lutar com esta dupla responsabilidade de trabalhar em casa e fora de casa.

A contracepção e o aborto não garantem a autonomia reprodutiva pois muita gente não pode ter (ou adequadamente educar) qualquer criança, ou pelo menos tantas quantas desejariam; outras ainda são involuntariamente inférteis. No entanto, quer a contracepção quer o aborto são essenciais para as mulheres que queiram ter o mínimo de autonomia reprodutiva, algo que é perfeitamente possível nos dias de hoje.

A longo prazo, o acesso ao aborto é essencial para a saúde e sobrevivência não apenas das mulheres e das famílias, mas também dos próprios sistemas sociais e biológicos dos quais todos dependemos. Dada a insuficiência dos actuais métodos contraceptivos e a falta de acesso universal a esses métodos, se quisermos evitar um rápido crescimento populacional é necessário que se recorra a algumas práticas de aborto. A menos que as taxas de crescimento populacional diminuam nas sociedades empobrecidas em que estas continuam altas, a mal-nutrição e a fome crescerão para níveis ainda mais assustadores que os actuais. Até poderia haver comida suficiente para alimentar toda a população mundial, se ao menos aquela fosse mais equitativamente distribuída. Contudo, isto não permanecerá assim indefinidamente. A erosão dos solos e as alterações climatéricas causadas pela destruição das florestas e pelo consumo dos combustíveis fósseis ameaça reduzir a capacidade que a terra tem de produzir comida — talvez drasticamente — já na próxima geração.

Mesmo assim, os opositores do aborto negam que o aborto seja necessário para evitar tais consequências indesejáveis. Algumas gravidezes são causadas por violações ou incestos involuntários, mas a maior parte resulta aparentemente de comportamentos sexuais voluntários. Por conseguinte, os opositores do aborto afirmam frequentemente que as mulheres que procuram abortar se "recusam a assumir responsabilidades pelos seus próprios actos." Segundo o seu ponto de vista, as mulheres deveriam evitar ter relações sexuais heterossexuais a menos que estivessem preparadas para levar a cabo uma gravidez daí resultante. Mas será esta uma exigência razoável?

As relações sexuais heterossexuais não são biologicamente necessárias para a sobrevivência ou para a saúde das mulheres — nem dos homens. Pelo contrário, as mulheres celibatárias ou homossexuais são menos vulneráveis a contrair cancro cervical, SIDA, assim como outras doenças sexualmente transmissíveis. Nem sequer é claro que o sexo seja necessário para o bem-estar psicológico tanto das mulheres quanto dos homens, apesar de a crença em contrário ser generalizada. É, no entanto, algo que as mulheres acham extremamente agradável — um facto que é moralmente significativo para a maior parte das teorias consequencialistas. Além disso, faz parte do modo de vida escolhido pela maioria das mulheres em todo o lado. Em alguns sítios, as mulheres lésbicas estão a criar formas de vida alternativas que parecem servir melhor as suas necessidades. Mas para a maior parte das mulheres heterossexuais a escolha de um celibato permanente é muito difícil. Em grande parte do mundo é muito difícil a uma mulher solteira sustentar-se a si própria (quanto mais sustentar uma família); e as relações sexuais são normalmente um dos "deveres" da mulher casada.

Resumindo, o celibato permanente não é uma opção razoável para se impor à maioria das mulheres. E como todas as mulheres são potenciais vítimas de violação, mesmo as homossexuais ou celibatárias podem ter de enfrentar gravidezes não desejadas. Como tal, até que surja um método contraceptivo totalmente seguro e de confiança, disponível para todas as mulheres, a argumentação consequencialista a favor do aborto permanecerá forte. Mas estes argumentos não convencerão aqueles que rejeitam as teorias morais consequencialistas. Se o aborto for intrinsecamente mau, como muitos acreditam, nesse caso não poderá ser defendido como um meio de evitar consequências indesejadas. Como tal, devemos procurar saber se as mulheres têm o direito moral de abortar.

3. Aborto e direitos das mulheres

Nem todos os filósofos morais acreditam na existência de direitos morais. Como tal, é importante que se diga algo acerca do que são os direitos morais; na secção 8 direi algo mais acerca da sua importância.

Os direitos não são entidades misteriosas que descobrimos na natureza; não são, na verdade, entidades de espécie alguma. Dizer que as pessoas têm o direito à vida é dizer, grosso modo, que ninguém deve ser morto deliberadamente ou privado do necessário para viver, a não ser que a única alternativa seja um mal muito maior. Os direitos não são absolutos, mas também não podem ser desprezados em favor de um qualquer bem aparentemente maior. Por exemplo, podemos matar em legítima defesa quando não existe outra hipótese de evitar sermos mortos ou gravemente feridos; mas não podemos matar outra pessoa simplesmente porque outros ganhariam alguma coisa com a sua morte.

Os direitos morais básicos são aqueles direitos que todas as pessoas têm, em contraste com os direitos que dependem de circunstâncias particulares, como por exemplo as promessas ou os contractos legais. Normalmente consideram-se direitos morais básicos o direito à vida, à liberdade, à autodeterminação, e o direito a não ser maltratado fisicamente. A proibição do aborto parece ir contra todos estes direitos morais básicos. A vida das mulheres é posta em perigo de pelo menos duas maneiras. Onde o aborto é ilegal, as mulheres escolhem frequentemente abortar de modo ilegal e inseguro; a Organização Mundial de Saúde estima que mais de 200 000 mulheres morrem todos os anos devido a estes abortos ilegais. Muitas outras morrem devido a partos involuntários, quando não encontram onde abortar, ou quando são pressionadas a não o fazer. É claro que os partos voluntários também acarretam um certo risco de morte; mas na ausência de qualquer tipo de coerção não existe violação do direito à vida da mulher.

A proibição do aborto também viola o direito das mulheres à liberdade, à autodeterminação e à integridade física. Ser forçada a dar à luz uma criança não é apenas um "inconveniente", como aqueles que se opõem ao aborto frequentemente afirmam. Levar uma gravidez até ao fim é uma tarefa árdua e arriscada, mesmo quando é voluntária. Certamente que muitas mulheres desfrutam das suas gravidezes (pelo menos de grande parte destas); mas para aquelas que permanecem grávidas contra a sua vontade a experiência deverá ser completamente miserável. E a gravidez e o parto involuntários são apenas o início dos sofrimentos causados pela proibição do aborto. As mulheres têm ou de ficar com a criança ou entregá-la para adopção. Manter a criança pode impossibilitar a mulher de prosseguir a sua carreira profissional ou impedi-la de estar à altura das suas outras obrigações familiares. Entregar a criança significa que a mulher terá de viver com o triste facto de saber que tem um filho ou uma filha do qual não pode cuidar e, muitas vezes, nem sequer saber se está vivo e de boa saúde. Vários estudos sobre mulheres que entregaram os seus filhos para adopção demonstram que, para a maioria, a separação dos seus filhos é a causa de um sofrimento profundo e duradouro.

Mesmo que aceitemos que os fetos têm direito à vida, será difícil justificar a imposição de tantos sofrimentos a mulheres que não estão dispostas a suportá-los para salvaguarda da vida fetal. Como assinalou Judith Thomson no seu muito discutido artigo de 1971, "Uma Defesa do Aborto", em nenhum outro caso a lei obriga os indivíduos (que não foram condenados por nenhum crime) a sacrificar a sua liberdade, autodeterminação e integridade física por forma a preservarem a vida de outros. Talvez um caso análogo ao do parto involuntário seja o recrutamento militar obrigatório. No entanto, tal comparação apenas moderadamente apoia a posição anti-aborto, dado que a justificabilidade do recrutamento militar obrigatório é discutível.

Segundo a opinião popular, principalmente nos Estados Unidos, a questão do aborto é frequentemente encarada como, pura e simplesmente, um "direito que as mulheres têm de controlar o seu corpo." Se as mulheres têm o direito moral de abortar gravidezes não desejadas, nesse caso a lei não deve proibir o aborto. No entanto, os argumentos a favor deste direito não resolvem totalmente a questão moral do aborto. Pois uma coisa é ter um direito, outra é o exercício desse direito numa circunstância particular ser moralmente justificável. Se os fetos têm igual e total direito à vida, então nesse caso o direito que as mulheres têm em abortar apenas deverá ser exercido em circunstâncias extremas. E talvez devamos ainda perguntar se os seres humanos férteis — de qualquer um dos sexos — têm direito a ter relações sexuais quando não estão dispostos a ter uma criança e assumir as responsabilidades por ela. Se as actividades heterossexuais comuns custam a vida de milhões de "pessoas" inocentes (ou seja, fetos abortados), não deveríamos pelo menos tentar desistir dessas actividades? Por outro lado, se os fetos ainda não tiverem direito substancial à vida, nesse caso o aborto não será tão difícil de justificar.

4. Questões acerca do estatuto moral dos fetos

Em que altura do desenvolvimento de um ser humano é que ele ou ela começam a ter pleno direito à vida? A maior parte dos sistema legais contemporâneos tratam o nascimento como o ponto em que uma nova pessoa, no sentido legal, começa a existir. Como tal, o infanticídio é considerado uma forma de homicídio, enquanto que o aborto — mesmo onde é proibido — normalmente não. No entanto, à primeira vista, o nascimento parece um critério de estatuto moral totalmente arbitrário. Por que razão os seres humanos obtêm todos seus direitos morais básicos quando nascem e não numa qualquer outra altura, anterior ou posterior?

Muitos autores procuraram estabelecer um critério universal do estatuto moral, através do qual se distinguiriam as entidades que têm plenos direitos morais das que não têm quaisquer direitos morais, ou menos e diferentes direitos. Mesmo aqueles que preferem não falar de direitos morais podem sentir a necessidade de um critério de estatuto moral universalmente aplicável. Por exemplo, os utilitaristas precisam de saber quais as entidades que têm interesses que devem ser considerados nos cálculos de utilidade moral, enquanto os deontólogos kantianos precisam de saber o que tratar como fim em si mesmo e não simplesmente como meio para atingir determinado fim. Foram propostos muitos critérios de estatuto moral. Os mais comuns incluem a vida, a senciência (ter a capacidade de experiências, incluindo a de dor), a humanidade genética (identificação biológica à espécie Homo sapiens) e a personalidade (que será definida mais à frente).

Como escolher um de entre estes critérios de estatuto moral em conflito? Duas coisas são bem claras. Primeiro, não devemos encarar a selecção de um critério de estatuto moral como um simples caso de preferência pessoal. Os racistas, por exemplo, não têm o direito de reconhecer direitos morais somente aos membros do seu grupo racial, dado que nunca foram capazes de provar que os membros das raças "inferiores" carecem de uma qualquer característica considerada relevante para a atribuição de estatuto moral. Segundo, uma teoria do estatuto moral deve proporcionar uma descrição plausível do estatuto moral não apenas dos seres humanos, mas também dos animais, das plantas, dos computadores, de possíveis formas de vida extraterrestre e de tudo o mais que possa surgir. Irei argumentar que a vida, a senciência e a personalidade são todas elas relevantes para o estatuto moral, ainda que não da mesma maneira. Tomemos em consideração cada um destes critérios sucessivamente, começando pelo mais básico, ou seja, pela vida biológica.

5. A ética de "respeito pela vida"

Albert Schweitzer defendeu uma ética de respeito para todas as criaturas vivas. Segundo ele todos os organismos, dos micróbios aos seres humanos, têm uma "vontade de viver". Como tal, afirma, qualquer pessoa que tenha "o mínimo de sensibilidade moral considerará natural interessar-se pelo destino de todas as criaturas vivas". Schweitzer poderá ter errado ao afirmar que todas as criaturas vivas têm uma vontade de viver. A vontade é mais facilmente explicada em termos de uma faculdade que requer pelo menos algumas capacidades de pensamento e que, por isso mesmo, é pouco provável que exista em organismos simples sem sistema nervoso central. Talvez a pretensão de que todos as criaturas vivas partilham uma vontade de viver seja uma afirmação metafórica do facto de os organismos estarem teleologicamente organizados, de tal modo que geralmente actuam de modo a promover a sua própria sobrevivência ou da sua espécie. Mas por que razão deverá este facto levar-nos a sentir respeito por todas as formas de vida?

Na minha opinião, a ética de respeito pela vida retira a sua força de preocupações ecológicas e estéticas. A destruição de criaturas vivas danifica frequentemente aquilo que Aldo Leopold chamou a "integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica." Proteger a comunidade biótica de danos desnecessários é um imperativo moral, não apenas para o bem da humanidade, mas também porque o mundo natural merece ser preservado intacto.

O respeito pela vida sugere que, sendo as outras criaturas iguais, é sempre melhor evitar matar uma criatura viva. Mas Schweitzer tinha a noção que nem todas as mortes podem ser evitadas. Defendia que nunca se deveria matar sem uma boa razão e certamente que nunca por desporto ou diversão. Assim, de uma ética de respeito por toda a vida não se segue necessariamente que o aborto seja moralmente errado. Os fetos humanos são criaturas vivas, assim como os óvulos não fecundados e os espermatozóides. Todavia, muitos dos abortos podem ser entendidos como um matar "compelido por uma necessidade compulsiva".

6. Humanidade genética

Os opositores do aborto dirão que é errado abortar não apenas porque os fetos humanos estão vivos, mas porque são humanos. No entanto, por que razão deveremos nós acreditar que a destruição de um organismo humano vivo é sempre moralmente pior que a destruição de um organismo de outra espécie qualquer? A pertença a uma espécie biológica em particular não parece, em si, um factor mais relevante para o estatuto moral que a pertença a uma raça ou sexo em particular.

É um acidente da evolução e da história que toda a gente a quem actualmente reconhecemos plenos direitos morais pertença a uma única espécie biológica. As "pessoas" do planeta Terra poderiam muito bem ter pertencido a muitas outras espécies diferentes — e na verdade talvez pertençam. É bem possível que alguns animais não humanos, tais como os golfinhos, as baleias e os grandes símios, tenham suficientes capacidades "humanas" para serem correctamente considerados pessoas — ou seja, seres capazes de raciocínio, consciência, relacionamento social e reciprocidade moral. Alguns filósofos contemporâneos consideram que (alguns) animais não humanos têm essencialmente os mesmo direitos morais básicos que as pessoas humanas. Quer estejam certos ou errados, é sem dúvida parcialmente verdade que qualquer estatuto moral superior atribuído aos membros da nossa própria espécie deve ser justificado em termos de diferenças moralmente significativas entre os seres humanos e as outras criaturas vivas. Defender que a espécie por si só nos fornece a base para um estatuto moral superior é arbitrário e vão.

7. O critério da senciência

Alguns filósofos defendem que a senciência é o critério primordial no que se refere à atribuição de estatuto moral. A senciência é a capacidade de ter experiências — por exemplo, experiências visuais, auditivas, olfactivas, ou outras experiências perceptivas. No entanto, a capacidade de sentir prazer e dor parece ser particularmente pertinente para o estatuto moral. É um postulado aceite pelas éticas utilitaristas que o prazer é intrinsecamente bom e a dor intrinsecamente má. Na verdade, a capacidade de sentir dor é frequentemente uma mais-valia para o organismo, habilitando-o a evitar ferimentos ou a sua própria destruição. Por outro lado, a longo prazo, alguns prazeres podem ser prejudiciais para o organismo. Não obstante, podemos dizer que os seres sencientes têm um interesse basilar em sentir prazer e em evitar a dor. O respeito por este interesse fundamental é o cerne das éticas utilitaristas.

O critério da senciência sugere que, em igualdade de circunstâncias, é moralmente pior matar um organismo senciente que um organismo não senciente. A morte de um ser senciente, mesmo quando indolor, priva-o de quaisquer experiências agradáveis que pudesse vir a disfrutar no futuro. Assim, a morte é tida como um infortúnio maior para esse ser do que para um ser não senciente.

Mas como podemos saber quais são os organismos vivos sencientes? Bem, quanto a isso, como podemos saber que os seres não vivos, tais como as rochas ou os rios, não são sencientes? Se esse conhecimento requer a absoluta impossibilidade de erro, então provavelmente nunca saberemos a resposta. Mas aquilo que de facto sabemos indica claramente que a senciência requer um sistema nervoso central funcional — que está ausente nas rochas, nas plantas e nos microorganismos simples. Esse sistema nervoso central também está ausente nos fetos com poucas semanas. Muitos neurofisiologistas acreditam que os fetos humanos normais começam a ter uma certa senciência rudimentar pelo segundo trimestre da gravidez. Antes dessa fase, os seus cérebros e órgãos sensoriais estão demasiado subdesenvolvidos para permitirem a ocorrência de sensações. As provas comportamentais apontam na mesma direcção. No fim do primeiro trimestre o feto pode já ter alguns reflexos inconscientes, mas ainda não responde ao seu ambiente de uma forma que sugira sensibilidade. No entanto, no terceiro trimestre algumas partes do cérebro do feto estão já funcionais e o feto pode reagir a barulhos, luz, pressão, movimento e outros estímulos sensíveis.

O critério da senciência apoia a crença comum de que o aborto tardio é mais difícil de justificar que o aborto feito ainda no inicio da gravidez. Ao contrário do feto pré-senciente, um feto no terceiro trimestre da gravidez é já um ser — ou seja, já é um centro de sensações. Se for morto, pode sentir dor. Além disso, a sua morte (como a de qualquer ser senciente) será o fim de uma corrente de sensações, algumas das quais poderão ter sido agradáveis. Na realidade, o uso deste critério sugere que o aborto não coloca qualquer questão moral séria quando é efectuado cedo, ao menos no que diz respeito ao impacto no feto. Enquanto organismo vivo mas não senciente, o feto no primeiro trimestre ainda não é um ser com interesse numa vida continuada. Como o óvulo não fecundado, pode ter o potencial de se tornar um ser senciente. Mas isto apenas significa que tem o potencial de se tornar num ser com interesse numa vida continuada, não significa que já tenha esse interesse.

Se por um lado o critério da sensibilidade implica que o aborto tardio é mais difícil de justificar que o aborto nas primeiras semanas da gravidez, tal não significa que o aborto tardio seja tão difícil de justificar quanto o homicídio. O princípio de respeito pelos interesses dos seres sencientes não implica que todos os seres sencientes tenham um igual direito à vida. Para vermos por que isto é assim temos de pensar um pouco mais no alcance deste princípio.

A maior parte dos animais vertebrados adultos (mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes) são claramente sencientes. É também bastante provável que muitos animais invertebrados, tais como os artrópodes (ou seja, insectos, aranhas e caranguejos), sejam sencientes. Pois também eles têm órgãos sensoriais, sistemas nervosos e comportam-se frequentemente como se pudessem ver, ouvir e sentir bastante bem. Se a senciência é o critério de estatuto moral, nesse caso nem sequer uma mosca deveria ser morta sem uma boa razão.

Mas o que conta como um motivo suficientemente bom para matar uma criatura viva cuja principal reivindicação para o seu estatuto moral é a sua provável senciência? Os utilitaristas geralmente defendem que os actos são moralmente errados se aumentarem a quantidade total de dor ou sofrimento existentes no mundo (sem que esse aumento de dor seja compensado com um aumento da quantidade total de prazer ou felicidade), ou vice-versa. Mas a morte de um ser senciente nem sempre tem tais consequências adversas. Em qualquer ambiente há espaço para apenas um número finito de organismos de uma determinada espécie. Quando um coelho é morto (de um modo mais ou menos doloroso) é provável que outro coelho tome o seu lugar, portanto a quantidade total de "felicidade coelhar" não diminui. Além disso, os coelhos, como muitas outras espécies que se reproduzem rapidamente, têm de ser caçadas por outras espécies para que a saúde do sistema biológico seja preservada.

Assim, sob a perspectiva utilitarista, a morte de seres sencientes não é sempre um mal. Contudo, seria moralmente ofensivo sugerir que as pessoas podem ser mortas simplesmente porque existem em grande número e, como tal, perturbam o meio ambiente. Se matar pessoas é mais difícil de justificar do que matar coelhos — como até os mais radicais defensores dos direitos dos animais acreditam — deve ser porque as pessoas têm um estatuto moral que não se baseia simplesmente na sensibilidade. No próximo capítulo analisaremos alguns dos possíveis argumentos deste ponto de vista.

8. Personalidade e direitos morais

Uma vez ultrapassada a infância, os seres humanos possuem não apenas a capacidade de sentir, mas também capacidades mentais "superiores", tais como consciência de si e racionalidade. São ainda seres altamente sociais, capazes de — excepto em casos patológicos — amar, educar os filhos, cooperar e responsabilizarem-se moralmente (o que implica a capacidade de orientarem as suas acções através de ideais e princípios morais). Talvez estas capacidades sociais e mentais nos possam dar razões sólidas para atribuirmos às pessoas um direito à vida mais forte do que aos outros seres sencientes.

Um argumento a favor desta conclusão diz-nos que estas capacidades distintivas das pessoas permitem-lhes valorizar as suas próprias vidas e as dos outros membros da sua comunidade de um modo que os restantes animais não fazem. As pessoas são os únicos seres que planeiam o seu futuro distante e também os únicos que vivem frequentemente assombrados pelo medo de uma morte prematura. Talvez isto signifique que uma pessoa valoriza mais a sua vida que um ser senciente que não é uma pessoa. Se assim for, matar uma pessoa é um mal moral muito maior que matar um ser senciente que não é uma pessoa. Mas também pode acontecer que a ausência de medo do futuro torne a vida dos seres sencientes que não são pessoas mais agradável e mais valiosa para eles, que as nossas vidas para nós. Como tal, temos de procurar noutro lado uma explicação racional para o estatuto moral superior que a maioria das pessoas (humanas) atribuem umas às outras.

Falar dos direitos morais é um modo de falar acerca de como devemos agir. É evidente que somente as pessoas compreendem a ideia de direito moral, mas isso não nos torna "melhores" que os outros seres sencientes. No entanto, dá-nos algumas razões convicentes para nos tratarmos uns aos outros como semelhantes morais, com direitos básicos que não podem ser desprezados por razões estritamente utilitaristas. Se não pudéssemos acreditar que os outros não estão dispostos a assassinar-nos sempre que julguem que da nossa morte poderá resultar um qualquer tipo de bem, as relações sociais tornar-se-iam incomensuravelmente mais difíceis e as vidas de todos, com excepção dos mais poderosos, empobreceriam imenso.

Uma pessoa moralmente sensível respeitará todas as formas de vida e procurará não infligir dor ou matar sem necessidade outros seres sencientes. No entanto, respeitará os direitos morais básicos de outras pessoas como ela, não apenas porque estão vivas e são sencientes, mas também porque pode esperar e exigir que demonstrem em relação a ela o mesmo respeito. Os ratos e os mosquitos não são capazes desta reciprocidade moral — pelo menos não nos seus relacionamentos com os seres humanos. Quando os seus interesses entram em conflito com os nossos, não podemos esperar que um argumento moral os convença a aceitar um compromisso razoável. Assim, é quase sempre impossível conceder-lhes um estatuto moral igual ao nosso. Mesmo a religião Jain na Índia, que considera o acto de matar qualquer ser um obstáculo à iluminação espiritual, não exige que tal acto seja evitado em qualquer circunstância, exceptuando nos casos daqueles que professaram votos religiosos especiais.

Se a capacidade de reciprocidade moral é essencial para a personalidade, e se a personalidade é o critério para a igualdade moral, então os fetos humanos não satisfazem esse critério. Os fetos sencientes estão mais próximos de serem pessoas do que os óvulos fertilizados ou do que os fetos com poucas semanas e, à custa disso, poderão ganhar um certo estatuto moral. No entanto, ainda não são seres com raciocínio e consciência de si, capazes de amor e reciprocidade moral. Estes factos apoiam o ponto de vista de que até mesmo o aborto tardio não equivale a homicídio. Com base nisto, podemos razoavelmente concluir que o aborto de fetos sencientes pode por vezes ser justificado por razões que não poderiam nunca justificar a morte de uma pessoa. Por exemplo, o aborto tardio pode por vezes encontrar justificação numa severa anomalia do feto, ou no perigo que a gravidez acarreta para a mulher, ou quaisquer outros sofrimentos pessoais.

Infelizmente esta discussão não pode terminar aqui. A personalidade é importante como um critério de igualdade moral inclusivo: qualquer teoria que negue um estatuto moral igual a certas pessoas deve ser rejeitado. No entanto, a personalidade parece de alguma forma menos credível enquanto critério exclusivo, uma vez que parece excluir crianças e indivíduos com deficiências mentais que não tenham as capacidades mentais e sociais características das pessoas. Além disso — como sublinham os opositores do aborto — a história demonstra que é com muita facilidade que os grupos dominantes racionalizam a opressão declarando, com efeito, que as pessoas oprimidas não são realmente pessoas, devido a uma suposta deficiência mental ou moral.

Tendo em conta isto, poderá ser sensato adoptar a teoria segundo a qual todos os seres humanos sencientes têm direitos morais básicos plenos e iguais. (Para evitarmos uma atitude "especista", podemos conceder o mesmo estatuto moral aos seres sencientes de qualquer outra espécie cujos membros adultos normais acreditamos serem pessoas.) Segundo esta teoria, desde que um indivíduo seja ao mesmo tempo humano e senciente, a sua igualdade moral não pode ser questionada. Porém, existe uma objecção quanto à atribuição de estatuto moral igual aos fetos, mesmo no que concerne aos fetos sencientes: é impossível na prática atribuir direitos morais iguais aos fetos sem se negar esses mesmo direitos às mulheres.

9. O nascimento tem importância moral?

Existem muitos casos em que os direitos morais de diferentes indivíduos entram aparentemente em conflito. Por regra, tais conflitos não podem ser resolvidos de um modo justo negando-se simplesmente estatuto moral a uma das partes. A gravidez, porém, é um caso à parte. Devido à relação biológica única entre os dois, a atribuição de um estatuto moral e legal ao feto idêntico ao da mulher tem consequências perversas para os direitos básicos desta.

Uma das consequências é que o aborto "a pedido" não seria permitido. Se a sensibilidade é o critério, então o aborto só seria permitido no primeiro trimestre. Há quem diga que este é um compromisso razoável, uma vez que dá tempo suficiente à mulher para descobrir que está grávida e decidir se quer ou não abortar. No entanto, certos problemas relativos a uma má formação do feto, à saúde da mulher, ou à sua situação pessoal ou económica, por vezes só aparecem ou se agravam numa altura mais avançada da gravidez. Se se partir do princípio que os fetos têm os mesmo direitos morais do que os seres humanos já nascidos, então a mulher será frequentemente pressionada a continuar grávida mesmo tendo em conta os riscos para a sua vida, saúde, ou bem-estar pessoal. Poderá mesmo ser forçada a submeter-se, contra a sua vontade, a procedimentos médicos perigosos e agressivos (uma cesariana, por exemplo) sempre que outros considerem que tal seria benéfico para o feto. (Inúmeros casos desses já ocorreram nos Estados Unidos.) Assim, a atribuição de plenos direitos morais básicos aos fetos ameaça os direitos básicos da mulher.

Mesmo assim, tendo em conta estes conflitos entre os direitos do feto e os direitos das mulheres podemos sempre perguntar por que motivo deverão ser os direitos da mulher a prevalecer. Por que não favorecer antes os fetos, seja porque são mais indefesos, ou porque têm uma maior esperança de vida? Ou por que não procurar um compromisso entre direitos fetais e direitos maternais, com iguais concessões de ambos os lados? Se os fetos fossem já pessoas, no sentido acima descrito, seria arbitrário favorecer os direitos das mulheres sobre os deles. Mas é difícil afirmar que quer os fetos quer os recém-nascidos sejam pessoas nesse sentido, visto que as capacidades de raciocínio, consciência de si e reciprocidade moral e social parecem desenvolver-se apenas depois do nascimento.

Por que razão, então, devemos nós tratar o nascimento, em vez de algum outro ponto posterior, como o limiar da igualdade moral? A principal razão é que o nascimento torna possível a atribuição de direitos morais básicos à criança sem que se viole os direitos morais básicos de outrem. Em muitos países, é possível encontrar boas famílias de adopção para as crianças cujos pais biológicos não têm condições ou não os querem educar. Uma vez que todos desejamos vigorosamente proteger as crianças, e como hoje em dia podemos fazê-lo sem impor demasiados sofrimentos às mulheres e às famílias, não existe qualquer razão para não o fazermos. Mas os fetos são diferentes: considerá-los iguais seria considerar as mulheres desiguais. Sendo a outra criatura igual, é pior negar direitos morais básicos a seres que claramente ainda não são pessoas. Mas visto que as mulheres são pessoas e os fetos não, em caso de conflito, devemos procurar respeitar primeiro os direitos das mulheres.

10. Personalidade potencial

Alguns filósofos afirmam que, apesar de os fetos não serem pessoas, o seu potencial para se tornarem pessoas dá-lhes os mesmo direitos morais básicos. Este argumento não é aceitável, uma vez que em nenhum outro caso tratamos o potencial de atingir certos direitos como se implicasse, por si, esses mesmos direitos. Por exemplo, todas as crianças nascidas nos Estado Unidos são um eleitor em potência, mas ninguém com menos de dezoito anos tem direito a votar nesse país. Além disso, o argumento da potencialidade prova demasiado. Se o feto é uma pessoa em potência, então também o é um óvulo humano não fecundado, juntamente com a quantidade de esperma necessária para efectuar a fecundação; no entanto, muito pouca gente concordará em atribuir a estas entidades vivas pleno estatuto moral.

Mesmo assim, o argumento da personalidade potencial do feto recusa-se a desaparecer. Talvez porque essa potencialidade inerente aos fetos é frequentemente uma forte razão para valorizar e proteger os fetos. A partir do momento em que uma mulher grávida se comprometa a cuidar do feto, ela e aqueles que lhe estão próximos seguramente que terão tendência a pensar no feto como um "bebé por nascer", e a valorizá-lo pelo seu potencial. O potencial do feto encontra-se não só no seu ADN, mas também nesse compromisso maternal (e paternal). A partir do momento em que a mulher se empenha na sua gravidez, é bom que ela valorize o feto e proteja o seu potencial — como a maioria das mulheres o faz, sem qualquer tipo de coerção legal. Mas está errado exigir a uma mulher que complete uma gravidez quando esta não pode ou não quer levar a cabo esse enorme compromisso.

11. Sumário e conclusão

O aborto é muitas vezes encarado como se fosse uma questão de direitos apenas do feto; e outras vezes como se fosse uma questão de direitos apenas da mulher. A proibição de um aborto seguro e legal viola os direitos da mulher à vida, à liberdade e à integridade física. Se o feto tivesse o mesmo direito à vida do que uma pessoa, o aborto seria, ainda assim, um acontecimento trágico e de difícil justificação, excepto nos casos mais extremos. Como tal, mesmo os defensores dos direitos das mulheres devem preocupar-se com o estatuto moral dos fetos.

Nem mesmo uma ética de respeito por todas as formas de vida exclui toda a morte intencional. O acto de matar requer sempre uma justificação, e é um tanto ou quanto mais difícil justificar a destruição deliberada de um ser senciente que a de uma criatura viva que não é (ainda) um centro de sensações; mas os seres sencientes não têm todos os mesmos direitos. A atribuição de um estatuto moral aos fetos idêntico ao das mulheres ameaça os direitos morais mais básicos destas. Ao contrário dos fetos, as mulheres já são pessoas. Elas não devem ser tratadas como algo menos simplesmente porque estão grávidas. É por isso que o aborto não deve ser proibido, e é também por isso que o nascimento, e não qualquer outro ponto anterior, marca o começo do estatuto moral pleno.

Mary Anne Warren
Tradução de Tomás Magalhães Carneiro
Artigo retirado de A Companion To Ethics, org. por Peter Singer (Blackwell, 1993, pp. 303-314)

Referências
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Outras Leituras
Feinberg, J., ed.: The Problem of Abortion (Belmont, Cal.: Wadsworth Publishing Company, 1984).
Goldstein, R.D.: Mother-Love and Abortion: A Legal Interpretation (Berkeley: University of Califoria Press, 1988).
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Mohr, J.C.: Abortion in America: The Origins and Evolution of National Policy, 1800-1900 (Oxford: Oxford University Press, 1978).
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Singer, P.: Animal Liberation: A New Ethics for our Treatment of Animals (New York: Avon Books, 1975) (trad. port.: Libertação Animal, Porto: Via Optima, 2000). Sunner, L.W.: Abortion and Moral Theory (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981).
Tooley, M.: Abortion and Infanticide (Oxford: Oxford University Press, 1983).

este artigo está também publicado na revista Crítica


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